quarta-feira, 23 de dezembro de 2009

Está bom de ver

Nem todos os arquitectos estao na vanguarda do pensar e do fazer. Alguns, em vez de usarem o pátio do atelier para experimentar e definir os novos rumos da disciplina, distraem-se com parvoíces.

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Ora, bolas!

Apercebi-me agora que, àquele post ali em baixo, devia antes ter chamado "O Corte Ingles".
Mas este blogue já está suficientemente empancado; se me ponho a emendar os antigos em vez de escrever os novos...

sábado, 14 de novembro de 2009

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

As palavras

Provavelmente já passou mais de um ano desde que a Sara me perguntou, pela primeira vez, quando e como é que apareceram as palavras, e como é que as pessoas se entendiam, antes de aparecerem as palavras.

Eu, claro está, aumentei o volume do auto-rádio e fingi que nao tinha ouvido nada. Mas sabia que estava apenas a adiar o assunto; estas dúvidas, quando se metem na cabeça dos miúdos, sao piores do que os piolhos: nao há maneira de as tirar de lá.

De maneira que, ao fim de umas poucas tentativas da sua parte, e eu próprio em várias tentativas da minha parte, lá consegui esboçar uma resposta que pareceu convence-la. Expliquei que, na base da linguagem, está a capacidade fisiológica de articular sons complexos, associada às necessidades de comunicaçao primárias para a sobrevivencia dos indivíduos e para a organizaçao da vida em sociedade. Expliquei que as palavras foram (e vao) surgindo aos poucos, uma a uma, à medida que foram (e sao) precisas em cada contexto, e que se modificam ao longo dos tempos, num processo de assimilaçao por um número cada vez maior de indivíduos, que torna a linguagem uma ferramenta eficaz e um corpo vivo. Só nao expliquei o signo, o significado e o significante porque isso também a mim me faz um bocado de confusao.

Ora este tema voltou à baila à mesa de jantar, num dia em que tínhamos convidado um casal de espanhóis nossos vizinhos lá para casa. Professor em Cambridge, ele revelou-se um daqueles tipos fascinantes-irritantes; nesse serao estava particularmente empenhado em conquistar a simpatia das crianças e fez questao de apresentar à Sara a sua teoria. Os primeiros a aparecer terao sido alguns nomes fundamentais: Eu, Tu, Urso, Gruta (e reparem só nas possibilidades que isto já encerra...). Depois, provavelmente, uns poucos verbos, que no fundo sao nomes de acçoes: comer, copular, dormir, fugir. Mais tarde, os adjectivos: importantes para distinguir, por exemplo, se o urso está assado ou se está furioso. E, por fim, esses produtos elaborados e luxuosos que sao os advérbios.

Fosse lá como fosse, a Sara parecia ter arrumado o assunto. Por isso estranhei que, bastante tempo depois, voltasse a perguntar-me, lá do banco de trás: «Oh pai, mas afinal, quando ainda nao havia palavras, como é que as pessoas...». Eu julguei que a pergunta era outra vez «como é que as pessoas se entendiam?» e, revirando os olhos, já ia dar-lhe a resposta do costume, quando ela acabou a sua frase: «como é que as pessoas pensavam?».

Aí, meus amigos, íamos tendo um acidente! Nao tenho palavras para descrever o meu orgulho naquela miúda: de alguma forma, ela percebeu que existe uma relaçao intrínseca entre a linguagem e o pensamento. Eu, que cheguei a essa mesma conclusao mas lá mais por volta dos vinte anos, encho-me de esperança no seu futuro.

Quando tinha a idade dela, nao só tais coisas nao me passavam pela cabeça, como todo o meu pensamento estava num estado básico, inteiramente dirigido para a acçao e estruturado em torno de um único conceito: «os ratos» (o nome do baldio em frente ao prédio, que o empreiteiro nunca ajardinou devidamente, e que era sinónimo de jogo de bola). Se nao estava nos ratos, eu só queria saber quando é que podia ir para os ratos. Se estava nos ratos, todo eu era suor e instinto, e só hesitava entre duas coisas: chutar rasteiro em força ou alto em jeito. Palavras para quê?

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Anda-se a criar uma filha para isto

Papá (assim de repente) - Matilde, tu sabes qual é o teu apelido, nao sabes?

Matilde (com um ar comprometido) - ...

Papá (incrédulo) - Nao sabes? Oh Matilde, nao sabes qual é o teu apelido?

Matilde (embaraçada) - Nao...

Papá (desconfiado de outra coisa) - Matilde, what's your surname?

Matilde (de rosto subitamente iluminado) - Siúza!

Dedo? Qual dedo?

O pai-de-todos da esquerda estava tranquilamente debaixo do pao, quando todos os da direita se cerraram em torno do cabo da faca de pao e, numa inexplicável descordenaçao de hemisférios, a puxaram para baixo e para trás, com um movimento decidido.

Lembro-me bem, na altura em que mudámos para esta casa, de andarmos pelas lojas do ménage com a nossa lista de coisas imprescindíveis. Entre elas, uma faca de pao. Lembro-me que, por mais duas ou tres libras, podíamos ter trazido um conjunto de cinco facas chinesas que incluía a faca de pao e uma base em madeira. Mas, sem necessidade de tanta lamina e com pouco espaço na bancada, decidimos manter os planos e comprar uma única, boa, faca de pao. E lá boa é ela. Na verdade, até se revelou uma faca multi-usos, que nao só corta o pao, como corta a pele e a carne; e estou certo que também teria cortado a unha, se tivesse conseguido atravessar a falangeta (benditos canecos de leite que a minha mae me obrigou a engolir).

Naturalmente, soltei um grito inumano. As meninas apareceram aterrorizadas na cozinha, a chorar só de imaginar o que podia ter-se passado. Já a Ana, que estava ali de volta do fogao (mas, como sempre, com um olhinho de lado a controlar-me), manteve a calma e julgo que, entre dentes, a ouvi dizer: «Isso é que é burro!»

Enquanto eu me esvaía em sangue para dentro do lava-loiças, tentando ao mesmo tempo manter uma cara descontraída para sossegar as pequenas, a Ana rectificava temperos. Finalmente, perguntou-me se eu precisava de alguma coisa e eu pedi-lhe, por favor, um pano para tentar estancar a hemorragia.

Demorou um bocado lá para dentro, até concluir que nao tínhamos em casa nenhum trapo adequado; quando voltou à cozinha, trazia na mao uma camisa da GAP acabada de passar a ferro e, com cara de Martim Moniz, disse-me para usar aquilo. Para meu próprio bem, recusei, e convenci-a a trazer-me antes umas das minhas boxers velhas.

Quando me viu enrolá-las à volta do dedo, começou a abanar a cabeça e a dizer que eu nao sabia apertar uma ferida: parece que há várias maneiras de apertar feridas, e nem todas sao boas... Aliás, nao imaginam a quantidade de coisas, assim simples e quotidianas, que ao longo destes anos o meu amor já me explicou que eu nunca soube fazer antes de ela me ensinar.

Justiça lhe seja feita, nessa altura a Ana prestou-se a ajudar-me mesmo e vinha até apertar a minha ferida; mas aí comecei eu a esbracejar, para que me saíssem todas da frente: é que a minha tensao arterial já estava ao nível do linóleo e o meu queixo nao tardava a ir fazer-lhe companhia.

Cambaleando às suas ordens, fui estender-me no chao da sala, com as pernas em cima do sofá e com a mao em cima do peito, para nao pingar a alcatifa do senhorio. Enquanto no sótao a Ana vasculhava os sacos ainda por arrumar à procura de pensos, as meninas acomodaram-se à minha volta. A Sara, entediada com aquele espectáculo, ligou a televisao à procura de outro. A Matilde foi buscar papel e canetas, sentou-se à chines e começou a puxar-me o braço para que eu pintasse consigo.

Finalmente a Ana desceu e, durante os minutos seguintes, por entre chacota e recriminaçoes, lá me fez um curativo. Depois cedeu às recomendaçoes da nossa filha mais velha, que passou o tempo todo a pedir-lhe que nao se distraísse com o jantar ao lume, e voltou para a cozinha, sem ficar a assistir à minha recuperaçao.

Quando me senti capaz de sobreviver sozinho, levantei-me e arrastei-me em busca da minha fatia de pao: com a fraqueza com que estava, nao podia esperar pelo jantar. Barrei-a abundantemente com queijo da serra e meti-a na boca em duas dentadas. Estava ali apoiado no canto da bancada, sentindo-me restabelecer a cada pedaço que engolia, quando a Ana me perguntou: «Entao, agora mastigas de boca aberta?»

Tréguas? Que é lá isso? Eu às vezes acho que hei-de estar um dia com os pés para a cova e que nessa altura a Ana me há-de dizer para manter as costas direitas. Mas, o que é que havemos de fazer, é a nossa natureza: nao só lhe pedi desculpa como, uma hora depois, já estava a lavar a loiça toda do jantar, apenas com a mao direita.

Só nao consegui foi esconder um pequenino sentimento de vingança, quando reparei que tinha salpicado de sangue os cortinados da cozinha: é que, se a loiça é comigo, a roupa é com a Ana. O episódio ainda nao está encerrado e quem ri por último ri melhor: só tenho que ver se estou por perto quando estiver a passá-los a ferro.

Claro que a KT e o MD sao mais giros que nós, e fizeram isto tudo em grande, com o dobro da graça e da perversidade. Mas é preciso ver que eles tinham toda uma equipa de produçao a apoiá-los, e um orçamento hollywoodesco. À nossa escala, a Ana e eu damos o nosso melhor na guerrilha doméstica.

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Donas de casa desesperadas

No ano passado, quando ainda havia indústria automóvel neste país, a Ana trabalhava a tempo inteiro e eu era doméstico.

Nesses dias felizes, todas as manhas eu punha as meninas na escola e esperava por elas à saída, a meio da tarde. Na altura, surpreendeu-me a quantidade de pais (na verdade, quase todas maes) com a mesma rotina. Entre as 9:00 e as 15:00, sobram apenas seis horas: o tempo mesmo à-justa para um part-time esforçado? Pela forma como ficavam por ali na palheta, ou seguiam devagar em grupinhos para o centro da vila, nao me parecia... Claro que nao havia Eva Longoria e duvido muito que tivesse havido qualquer crime, mas todo o cenário, personagens, adereços e diálogos faziam lembrar as Donas de Casa Desesperadas.

Ora eu (voces conhecem-me) olhava para aquilo como quem olha para a televisao: até gostava de ver, mas nao ia meter-me lá dentro! Fui cumprimentando quem me cumprimentava, fazendo alguma conversa de circunstancia, mas nunca entrando em pormenores, nao fossem as pessoas ficar à espera que eu lhes fixasse as caras, decorasse os nomes ou no dia seguinte ainda soubesse de que rebentos eram afinal os progenitores.

Agora que estou eu a trabalhar e a Ana (por assim dizer) em casa, tudo isto mudou radicalmente: nuns mesitos, a crise económica já fez mais pela nossa vida social do que Campo de Ourique em oito anos. Quem veja o calendário pendurado na cozinha ou repare na sua factura de telemóvel percebe facilmente que a minha mulher anda numa azáfama tao grande que, mais tarde ou mais cedo, vai ter que contratar alguém para lhe dar uma maozinha.

A escola organiza, no mínimo, uma actividade por semana, em que os pais sao convidados a assistir ou participar: reunioes, convívios ou celebraçoes. A associaçao de pais e amigos da escola tem, naturalmente, o seu próprio programa alternativo: a noite do conto, a sessao de Quizz, o workshop de maquilhagem e cabeleireiro. A maior parte destes eventos é acompanhada por rifas, chá e bolos, que sao feitos, oferecidos e depois comprados pelos participantes: é tudo para a caridade, garantem-nos. Muito gostam eles da caridade; nós também, embora nao ao ponto de ficarmos a depender dela.

Mas, enfim, há pelo menos duas coisas que a Ana e as amigas fazem exclusivamente a pensar nelas.

Uma é o clube do Jamie Oliver. Eu sei que parece engraçado, porque o menino está na moda. Percebo que as senhoras gostem tanto dele, porque tem uma cara laroca, porque sabe cozinhar ou porque fala pelos cotovelos. O que me custa a aceitar é que se reunam em casa umas das outras para ver a revista dele e comprar por catálogo os acessórios de cozinha que ele supostamente recomenda. E desde já peço compreensao: se um dia vierem até cá e eu tremer ao servir-vos café num serviço de porcelana branca que podia ser do Ikea, é muito natural que seja do Jamie e tenha custado mais do que todo o recheio da casa.

A outra é o clube de leitura. Esse sim, eu compreendo, e até gostava de participar. Nao para ler os livros, e seguramente nunca para falar deles: aprecio tanto o silencio durante a leitura como depois dela. Gostava de participar porque já percebi que, nessas reunioes, o orçamento para livros é minúsculo, comparado com o da comida e bebida. Comida e bebida é um eufemismo, o que elas gostam mesmo é de vinho, passam o serao a emborcar copázios dos grandes (deve ajudá-las com o sub-texto). Eu, para além de ficar em casa com as meninas, ainda abasteço as senhoras. Na hora de sair, a Ana vem sempre cravar uma garrafa; e, olhem lá, nao só já torce o nariz ao Chardonnay, como ainda pergunta se nao temos Pinot Grigio. Eu dou-lhe o Pinot Grigio.

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Segredos e mistérios

Nao sei se já aconteceu a alguém, como nos filmes de terror, chegar a uma aldeola pequena onde todos sao muito simpáticos consigo, mas ter a sensaçao que toda a gente sabe, e esconde de si, qualquer coisa: um segredo.

Em Nantwich há um segredo. Só que, ao contrário de outras terras, aqui os visitantes sao prevenidos logo à chegada. Por toda a parte existem tabuletas a anunciar o segredo, a indicar o caminho e a distancia que falta para o segredo. Neste fim-de-semana, seguimo-las finalmente e fomos entao descobrir o Secret Bunker.

Tem graça o caminho até lá, por entre quintas e armazens, cavalos, vacas e fardos de palha. Mas o interior foi uma desilusao. Esperava mais pisos subterraneos, mais paredes grossas de betao e portas de aço maciço. Vimos a exposiçao a correr, nao só porque as meninas estavam cheias de fome, mas também porque o cheiro a mofo nao permitia demoras: razao para pensar que talvez fosse preferível a radiaçao ao ar livre.

Segundo percebemos, as instalaçoes albergariam uma equipa do governo e de altas patentes militares que, em caso de catástrofe nuclear, comandaria a resistencia e a reconstruçao desta regiao, a partir daquele buraco. Para tornar a coisa mais interessante, dissemos às meninas que também ali ficaria escondida a família real; mas nao sei se acreditaram que a rainha podia ficar naquele dormitório em regime de cama quente (15 camas para 45 pessoas, dormindo em tres turnos diários), e o estilo da construçao era obviamente demasiado moderno para o príncipe Carlos.

Mais do que um refúgio, aquilo era um centro de comando. Mesmo à pressa, foi suficiente para ficar com uma ideia da importancia crítica da espionagem, da contra-espionagem e de todas as formas de comunicaçao num cenário de guerra. E teve piada o confronto com o repositório das várias tecnologias que atravessaram aquelas décadas: desde o telégrafo, ao telefone, aos radares, aos computadores, ao rádio e à televisao (estúdios da BBC montados, prontos a transmitir notícias ao que sobrasse do país). Claro que, tentando explicar estas coisas às meninas, a gente fica a perceber que nao sabe nada: afinal, quem é que se lembra dos impulsos eléctricos, da frequencia das ondas magnéticas e da cisao atómica?

Foi, por isso, com um certo panico que ouvimos a Sara perguntar atrás de nós: “Como é que funciona isto?” Era uma daquelas centrais telefónicas antigas, em que a operadora marcava os números e fazia as ligaçoes introduzindo os cabos num painel de entradas. Eu expliquei o melhor que pude, mas ela continuava a abanar a cabeça. Quando me conseguiu interromper, perguntou: “Oh pai! O que eu quero saber é como é que se marca um número de telefone, neste disco com estes furos!?”.

quarta-feira, 21 de outubro de 2009

Not so cold

Aqui é frequente, depois das notícias nacionais e internacionais, haver um pequeno serviço informativo regional. Ontem, à espera dos resumos da liga dos campeoes, assisti a tudo isso. Mas valeu a pena por causa disto.

domingo, 18 de outubro de 2009

Door schedule

O sistema imperial de unidades é uma idiossincrasia, doméstica e inofensiva.
O sentido das faixas de rodagem é uma convençao, igual a tantas outras.
Mas isto,


isto é profundamente errado e altamente perturbador!

Que é isso, menina?

Tem lá coisa mais feia do que xingar quem gosta de voce?
Bota os olhos na Malú, vai?

quarta-feira, 14 de outubro de 2009

Era uma casa

Os ultimos dias foram passados a mudar de casa. Em todas as nossas mudanças de casa, com excepçao da penúltima, sempre tivemos o cuidado de mudar para perto, dispensando as companhias de mudanças, as carrinhas e os caixotes. Já nos habituámos a ensacar os nossos tarecos e a levá-los pelo braço, demasiado expostos à curiosidade alheia, em sucessivos passeios pela rua acima: foi assim da Infantaria 16 para a Sao Joao Nepomuceno, foi assim da Sao Joao Nepomuceno para a Silva Carvalho e foi assim agora, do número 75 para o número 79 da Hawksey Dr.

Claro que o recorde do BU, do 5º para o 7º andar, continua incólume: esse só será batido quando o próprio se mudar do direito para o esquerdo. Mas a nossa mudança, embora de curta distancia, foi de enorme importancia, porque mudámos do prédio para a moradia (aqui, famílias que se prezam moram numa moradia).

Ora, morar numa moradia é toda uma outra coisa. Percebemo-lo rapidamente, ainda durante esta semana em que estivemos com um pé em cada lado. Se, ao princípio, ainda nos referíamos à casa velha e à casa nova, depressa abandonámos essa designaçao e passámos a chamar-lhes aquilo que realmente sao: o apartamento e a casa. Claro que, antes, o apartamento era a nossa casa; e claro que na casa ainda nao nos sentíamos em casa, mas já era óbvio que a casa é que era casa: quatro paredes e um telhado, se me entendem.

Aqui, ainda estamos um pouco acampados. Em abono da verdade, deve dizer-se que é uma moradia geminada, e que nao é muito espaçosa. Para já, despejámos tudo o que falta arrumar para dentro do quarto extra. Agora nao dá para saber, mas a Ana jura a pés juntos que aquilo tem chao e, se isso se confirmar, um dia poderá receber visitas.

A garagem é outra das grandes vantagens; nao para o carro, que está muito bem na rua, mas para as bicicletas, trotinetas e afins. As meninas estao a adorar esta vida de entra e sai, da rua, para casa, para o jardim, para as traseiras, e volta-nao-volta entram por aqui adentro os colegas da escola ou os filhos dos vizinhos, que depois ficam para o tea.

Nao me perguntem pela arquitectura, que nao tem ponta por onde se lhe pegue. Mas eu, ferreiro, nunca estive tao satisfeito com nenhuma casa como com esta. Gosto de lavar a loiça ao nível da rua, de espreitar lá para fora a ver e a cumprimentar quem passa, através da janela em frente à bancada, por entre os caules dos cravos na jarra do peitoril. Gosto de ter um canteiro em frente à porta, uma garagem ao lado da casa, uma cerca, um relvado e um jardim de inverno nas traseiras. Gosto de sentir o terreno debaixo dos pés, de subir os degraus ouvindo o chao ranger um pouco como em Ansiao ou em Alferrarede, de ter um quarto esconso com janelas de sótao a ver o céu. Gosto quando fica noite, e silencio, de percorrer a casa inteira, a certificar-me de que todas as portas e janelas ficaram fechadas.


Numa nota menos positiva, nao sei onde pendurar um espelho. Quem aqui instalou tres casas de banho deixou caprichosamente um lavatório num canto, outro em frente a uma janela e um último junto ao plano inclinado do telhado (esta dificuldade talvez desculpe um pouco o aspecto da família-alema-de-leste que aqui viva).

Numa nota menos positiva e mais alarmante, o jardim está vivo. A relva cresce parece que está endemoninhada e agora com isto do Outono vai das folhas dum arbusto que temos ali arrumado num canto começarem todas a cair para o chao e a espalharem-se com o vento. Se isto continua nao sei que faça, provavelmente tenho que chamar a Protecçao Civil.

ShroKates



Afinal parece que nao se demite. Pode ser um pantano, mas é o xeu pantano!

quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Postal No2


Nanteviqque, 26 de Agosto de 2009

Caros amigos,

Cá vai, provavelmente para chegar atrasado, um postalzinho à moda antiga, mostrando uma vista do centro de Nanteviqque, para onde voltei sozinho e a muito custo, depois daqueles pouquíssimos dias de férias com as meninas em Sesimbra.

Muito de vós poderao pensar que agora é que começaram as minhas verdadeiras férias, e eu também pensei, mas a verdade é que, ao fim de dois ou tres dias, a coisa se torna aborrecida de morte. Nada melhor, portanto, do que manter-me ocupado: durante a semana no atelier, durante o fim-de-semana aqui por casa.

Uma das coisas que estava nos meus planos desde há meses era pintar as ombreiras da porta da casa de banho, esfoladas pelos topos de uma barra fixa que ali tinha montado (é verdade, nao fui lá muito esperto) para a Sara treinar elevaçoes.

Eu, até por obrigaçao profissional, tenho um certo conhecimento destas coisas da bricolage. Em termos práticos, porém, nao sou muito melhor do que um certo Professor Catedrático da Universidade de Coimbra, com doutoramento em Teoria Geral do Direito da Personalidade. Mesmo assim, atirei-me ao trabalho.

No sábado de manha, visitei pela primeira vez uma dessas lojas, que aqui sao muitas e gigantescas, inteiramente dedicadas ao DIY: le-se [di-ai-uai] e significa Do It Yourself. O DIY (já desconfiava, mas pude comprovar lá dentro) move multidoes. Nao é preciso ser o A.B., para perceber que isso tem raízes histórico-culturais e também razoes sócio-económicas: a tradiçao da jardinagem, o movimento de Arts and Crafts, o culto do tempo livre produtivo, o custo proibitivo da mao de obra qualificada, entre outros factores, contribuiram para a dimensao do fenómeno.

Eu confesso que também gostei de perder tempo naqueles corredores, até ter a certeza de que trazia a tinta adequada e o diluente próprio, a melhor das trinchas mais baratas, a fita suficiente, a lixa de grao certo. Aproveitei para ver coisas que nao preciso e outras que nem sequer percebo para que servem ou como funcionam. Gramei de vestir as roupas velhas e de assobiar.

O trabalho ficou aceitável. Ninguém percebe que houve ali nova demao e, além disso, nao deixei pingos brancos na alcatifa do corredor (aqui o The Guardian é tao grande como o Expresso). O que eu nao sabia era que aquilo era apenas o começo; por estas bandas, muito mais do que um hobby, o DIY é uma filosofia de vida, e estende-se para lá de tudo o que eu podia imaginar.

Vejam só que no dia seguinte me caiu uma coroa provisória (desculpem entrar em miudezas) e o meu irmao avisou logo que nao vinha cá para me colar isto. Depois de falar com um colega que trabalha em Londres, disse-me que por uma consulta regular ia esperar meses e que duma urgencia provavelmente seria corrido a pontapé. Mas aconselhou-me a passar na farmácia, porque era natural que lá vendessem o cimento próprio e talvez eu conseguisse fazer a coisa sozinho.

Ainda sem saber se estava a ser gozado, fui ver. Era verdade. Chama-se RECAPIT, vem numa embalagem verde com um potezinho e um pincel minúsculos, custa £4.00 e traz atrás as indicaçoes: lave o dente; raspe cuidadosamente todos os restos de cimento da coroa e verifique o seu posicionamento; lave, enxague e seque; passe uma fina camada homogénea de cola no interior da coroa; humedeça o dente; coloque a coroa e trinque com força repetidamente; se sentir dor retire e repita o procedimento, ou consulte o seu dentista; se se sentir confortável mantenha a pressao durante cinco minutos; limpe o excesso de cola à volta; deixe secar e pode comer ao fim de uma hora.

Alucinante, nao? Mas resultou. Entretanto, por curiosidade (e arriscando talvez um pouco os vossos empregos) deixem-me só acrescentar que na prateleira da farmácia estava outro produto do mesmo fabricante, destinado a preencher os buracos dos dentes cariados quando a massa do dentista cai. Vem numa embalagem laranja e chama-se REFILLIT. Já consigo imaginar as instruçoes: sente-se em frente ao espelho, com a cabeça ligeiramente inclinada para trás; abra bem a boca e aponte uma lanterna para o interior; segure a broca com a mao direita e cuidadosamente...

Bom. Saúde para todos, sao os melhores votos deste vosso amigo.

(assinatura ilegível)

sábado, 26 de setembro de 2009

Rescaldo

Pronto, andávamos curiosos e já ficámos a saber: há cerca de 36% de portugueses que nao leem o Capacete. Ou, pior, leem e nao seguem as orientaçoes...
Estou desanimado. Nao sei que vos diga, excepto que Nanteviqque é uma terra muito simpática, se alguém estiver a pensar pedir asilo político.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Hugh Laurie

Quem é fan daquele médico inteligente, casmurro, dedicado, sarcástico, charmoso, egoísta e coxo, chamado Dr. House, levanta o braço!
E quem se lembra daquele tipo alto, desengonçado e burro como uma porta, que fazia de rei e de jovem tenente no Black Adder, levanta o outro!
Ah, pois é...

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Verbum dei

Julgo que já contei que aqui o diácono local se chama Mascarenhas: o apelido é portugues, mas basta olhar para ele para perceber que veio de Goa. A pele castanha escura contrasta com o cabelo e a barba grisalhos, próprios da idade; no altar, com os paramentos vestidos, tem um ar asceta e profético (um pouco ao contrário do pároco, que é um irlandes bonacheirao). Por isso, quando se aproxima do púlpito para uma das suas homilias meticulosamente preparadas, toda a gente faz silencio e presta atençao.

No domingo passado, começou assim: «O meu pai, embora falasse portugues fluentemente, nunca mo ensinou. Só lembro, e creio que ainda consigo reproduzir, uma frase simples, mas plena de significado, que ele repetiu durante toda a sua vida, e com especial insistencia nos ultimos anos.». Neste ponto, tinha a assembleia em suspenso. Muita gente daqui passa férias em Portugal, talvez alguns acreditassem que iam conseguir entender; a Ana e eu estávamos mortos de curiosidade.

Entao ele realmente disse qualquer coisa, mas ninguém percebeu nada: nem os ingleses nem nós. Apercebendo-se de que nao tinha sido compreendido, nem sequer pelos portugueses na terceira fila, fitou-nos directamente e fez outra tentativa. Desta vez falou muito devagar, separando todas as sílabas, e nós, estupefactos, ouvimos distintamente : «POR-A-MOR-DE-DEUS, NAO-VO-TEM-NO-SÓ-CRA-TES!».

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

La menina

Nao chove vai para dez dias. Quando nao chove, os percursos a pé, de casa para o comboio e do comboio para casa, tornam-se inadvertida e quase imperceptivelmente mais lentos, e eu reparo em coisas que nunca tinha reparado.

Um destas manhas, por exemplo, reparei numas garrafinhas de leite deixadas na soleira de uma porta: leite fresco do dia, levado a casa a tempo do pequeno-almoço. Gostei da ideia; quando trocarmos do apartamento para a moradia e tivermos o nosso próprio driveway, nao me posso esquecer de comprar um roupao para estas ocasioes.

Uma destas tardes, vinha pelo canto do olho a espreitar para dentro das casas das pessoas. Eram aqueles minutos do lusco-fusco, em que a luz cá fora já era pouco mais do que lá dentro. Nas vidraças, havia simultaneamente reflexo e transparencia, sobrepondo a vista do exterior com a do interior.

Vinha a olhar para naperons e porcelanas, abajours, papel de parede, e outros objects inanimados, quando de repente, quase com um susto, deparei com uma rapariga à janela, demasiado chegada ao vidro e estranhamente imóvel. Se fosse uma loja, no centro da cidade, seria um manequim.

Num segundo relance, percebi que ela estava em frente a um espelho, daqueles pequenos redondos que giram dentro de um aro fixo e tem zoom in de um lado e zoom out do outro. Portanto, embora ela estivesse à janela, nao estava a olhar cá para fora; estava apenas a aproveitar o resto da luz natural para se maquilhar, e quedara-se absorta no sua própria imagem, que eu sabia reflectida (embora nao a pudesse ver, mas era fácil de adivinhar) num plano intermédio entre o seu rosto e o vidro da janela.

Tudo muito rápido (que eu nao sou de ficar especado a olhar para as pessoas, a menos - claro- que sejam giras), dei mais um passo e segui em diante. Mas, no instante em que passei em frente ao peitoril, ainda vislumbrei, junto com o meu reflexo no vidro da janela, à transparencia para o interior, um grande plano de mim reflectido na face de trás daquele espelho, que do outro lado reflectia a cara que eu via de frente, embora ela a mim nao me visse, porque estava demasiado reflexiva.

Só faltou um espelho na parede do fundo, atrás da rapariga. Ainda assim, estou certo de que DV teria apreciado a cena, e provavelmente feito qualquer coisa com ela. Pela minha parte, fica só o post, que as tintas aqui sao caras.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Prova dos Nove

E não é que está a dar certo?
Muitos Parabéns!

Postal No1


Sesimbra, 15 de Agosto de 2009

Caros amigos,

Cá vai, provavelmente para chegar atrasado, um postalzinho à moda antiga, mostrando uma vista da baía de Sesimbra, onde viémos passar a maior parte das nossas férias.

Pus-me a fazer contas, e já lá vao mais de 30 anos, desde o primeiro Verao em que para aqui vim. A praia nao mudou nada: o mar calmo e o areal curto fazem dela o lugar perfeito para os pais trazerem tranquilamente os filhos pequenos. É uma praia familiar (aliás, a minha família está bastante presente), onde toda a gente se conhece do toldo ao lado, deste ano ou do ano passado.

Uma das coisas que faz a praia segura é que a Camara Municipal mantém os homens sinistros e os loucos perigosos à distancia, graças à inovadora política de lhes oferecer gabinetes e ocupaçao permanente, como vereadores do urbanismo, do transito e do espaço publico.

Meus amigos: do paredao para fora, está tudo perdido! A marginal, que tinha um equilíbrio simpático de passeio, estacionamento, faixa de rodagem e pequenas esplanadas, foi “conquistada para os peoes”. Mas um passeio daquela largura nao se justifica nem em frente aos Pasteis de Belém e, para nao parecer vazio, toca de enche-lo com bancos, palmeiras, brise-soleils, ecopontos, moopies e toda essa tralha urbana.

Quem precisa de vir de carro para a praia segue apertadinho entre ciosos pinos, no pára-arranca das grandes cidades (porque as cargas e descargas precisam de se fazer, e a largura da via nao permite mesmo um carro passar ao lado do outro) até ao estacionamento em altura mais estrambólico que é possível imaginar (nem vou tentar explicar, digo só que é preciso descer se queremos subir, e que o contrário também é verdadeiro).

Mas o pior ainda é para quem vai a pé. Claro que os senhores repavimentaram tudo, e agora o passeio é feito com um mosaico de granito serrado, com 2 pífios centimentos de espessura, colado com cimento. Cinzentinho escuro à arquitecto moderno, aquece ali ao sol de uma maneira que nunca mais ninguém saiu da praia descalço; está todo ratado por tampas de esgoto e sarjetas semeadas ao Deus-dará, e claro que nas zonas mais frágeis (por exemplo nas lindas molduras de canteiros com cantos a 45º) já está todo partido e a levantar, fazendo cair os mais desprevenidos, alguns deles meus queridos.

Portanto, voces estao mesmo a imaginar-me, entro na praia a bufar e saio a bufar da praia. Nao consigo parar de pensar na calçada antiga que lá estava, tao docemente amaciada pela brisa, pela água salgada e pelos pés com areia de tantas geraçoes. Onde é que aqueles brutos criminosos terao ido despejar esse entulho? Eram umas boas centenas de metros cúbicos!

Bom. Saúde para todos, sao os melhores votos deste vosso amigo.

(assinatura ilegível)

PS: arquitecto que lá vá nao pode deixar de dar um pulo à frente do mercado, para ver o incrível posto de transformaçao que ali fizeram, aproveitando um “espaço vago”. Juro. Vale mesmo a pena.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Violencia Doméstica

Já devo ter explicado que aqui a primária começa aos quatro e dura sete anos. Isso fez com que as minhas filhas fossem colegas de escola já este ano lectivo; em Portugal, tal só aconteceria com a Matilde no 7º e a Sara no 12º (se nenhuma entretanto reprovasse).
De modo que estao as duas entusiasmadíssimas, a aproveitar ao máximo este momento. Para a Matilde, é uma promoçao enorme; para a Sara, é a ocasiao de se afirmar (e ser aceite) como mana sábia e responsável. Para já, está a correr muitíssimo bem.
Mas chegar ao fim do dia e obrigar aquele pirralho a sentar-se à mesa para fazer os trabalhos de casa é uma violencia. O braço mal chega ao tampo, a cabeça está sempre a cair para a frente e as vogais parecem satélites desintegrados à deriva no espaço da folha pautada. Só apetece dar-lhe colo, enche-la de beijinhos e esquecer o assunto.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Foto

Nao percebo tanta curiosidade. Mas claro que faço a vontade aos meus amigos.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Fim de Férias

Quando é que o Verao realmente acaba pode ser uma questao discutivel. Por aqui ainda restam umas andorinhas (a mais irritante das quais resta debaixo do beirado mesmo por cima da nossa varanda de sacada), mas a minha pele, torrada à pressa em quinze dias de praia, já se foi embora toda.

Seja como for, as férias acabaram mesmo. Talvez nao quando regressei sozinho, a meio de Agosto, mas definitivamente agora, que o contingente feminino se juntou a mim. Com elas, voltaram também a esta casa a alegria, a algazarra, a desarrumaçao e aquecimento central: aqui entrámos todos em modo de Inverno, exactamente no dia 2 de Setembro.

Entre as várias coisas que a Ana está a por em ordem, naturalmente incluo-me eu. Embora surpreendida por verificar que eu sobrevivi às minhas próprias técnicas culinárias, voltou a assumir essa nobre tarefa. Deplorou o meu método de virar do avesso para voltar a usar a roupa interior, e cancelou a conta na engomadoria. No fim-de-semana deitou para o lixo todos os meus dois pares de sapatos, levou-me às compras e marcou-me hora no cabeleleireiro.

Comprar os sapatos até corre bem. Para mim, é fácil entrar na sapataria e identificar cerca de 100 modelos que acho que me vao bem. A Ana, por sua vez, tem o condao de discernir (decidir?) quais sao os 49 que sao de gay e os 49 que sao de velho, e portanto quais sao os únicos dois que sao “a minha cara” - expressao um pouco estranha, agora que a escrevo, tratando-se de sapatos: vou indagar.

Cortar o cabelo é bastante mais penoso. Admito as minhas limitaçoes de vocabulário, que aliás já vinham de Portugal, mas que aqui se tornam ainda mais flagrantes. Sentindo talvez a rédea demasiado solta, o cabeleleireiro (sim, é um salao unisexo e isso provavelmente nao ajuda) passou mais tempo com a escova e o secador do que propriamente com o pente e a tesoura. Vencem-me sempre por exaustao; nunca, em toda a minha vida, depois de me mostrarem com o espelhinho como fiquei a toda à roda, pedi qualquer alteraçao: está sempre bem.

Claro que, desta vez, nao estava. Saindo à pressa do cabeleireiro, e vendo-me de relance numa montra de Nantwich, confundi-me com aquela actriz que fazia o “Crime, disse ela”. Fui ter com a família ao Tea Lounge. A Ana ainda disfarçou, mas as meninas foram crueis: a Matilde disse que eu parecia a Mrs Mosley lá da escola, e a Sara acrescentou que lhe chamavam “cabeça de melao”. Ele há coisas que uma pessoa nao devia ser obrigada a ouvir.

Mas tudo tem um lado positivo: essa alcunha, por exemplo, fez-me pensar que estava na hora de recomeçar as actividades aqui no Capacete.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Ronaldo e Cicciolina

Bom, talvez o título seja um pouco enganador. Queria só chamar a atenção para o iminente recomeço deste blogue, agora que a vida está prestes a voltar à normalidade.

sexta-feira, 31 de julho de 2009

Saudades

Está mais do que combinado que o blog nao é para me queixar de saudades. Mas a verdade é que, nestes últimos dois dias, tem sido muito difícil passar sem o anticiclone dos Açores. Está por aí?

Zapping

Nestes dias em que tenho tido o poder só para mim, e embora ao fim do dia já me reste pouco tempo para o exercer, consigo ver um pouquinho mais do que os quinze minutos habituais da Sky News, e começo a ter uma ideia do panorama televisivo no Reino Unido.

Dos cerca de quarenta canais que recebemos, graças a nao-sei-que que é digital, mais de metade é lixo. Entre os generalistas, o maior lixo é a ITV, curiosamente anagrama da TVI, e muito parecida na linha editorial. Há vários temáticos, cujas transmissoes acabam sempre antes de eu chegar a casa, e imensos de televendas e passatempos, que continuam 24/7.

Agora, o meu zapping acaba sempre na BBC. De entre os vários canais do Estado, aquele que para já parece melhor é o 3: no horário nobre, comédias inteligentes (só percebo algumas) ou documentários interessantes; pela noite fora, uma espécie de reality shows, dignos e pedagógicos.

Parece um contra-senso, mas nao é. Nao há publico, nem gritaria; nao há sequer apresentador, para além de uma voz-off. Há um tema, e algumas pessoas ligadas a ele ou afectadas por ele, que aceitam dar testemunho e ser filmadas na sua rotina diária (quase) sem encenaçoes. Um programa pode ser sobre famílias disfuncionais, pais adolescentes, desempregados, idosos sozinhos, anoréticas ou obesos mórbidos. Obviamente questoes sérias, tratadas com seriedade, sem juizos de valor nem demagogia sentimental, mas ao mesmo tempo com algum humor, ou pelo menos com um espírito positivo. Neste momento, por exemplo, está a dar um sobre duas raparigas de quinze anos, que acham que talvez tenha chegado a altura de tomarem uma grande decisao...

E há, claro, o concurso. Chama-se Young, dumb and living off Mum. A ideia é simples, e divertida. Dez pais assumem que estragaram com mimos os respectivos filhos. Os meninos e as meninas, entre os dezoito e os vinte cinco anos, egoístas, preguiçosos, incapazes, materialistas, fúteis (é escolher), vao para uma casa tipo Big-Brother, e em cada semana devem cumprir uma tarefa, proposta por um dos pais. No fim da semana, os pais devem chegar a acordo sobre qual foi o pior deles, e expulsá-lo. O vencedor, que supostamente terá provado ser capaz de fazer alguma coisa pela vida, parece que ganha uma viagem à volta do mundo.

No programa que vi, a rapaziada teve que dar o litro a trabalhar num hotel. Correu bastante mal. Mas surpreendentemente (ou, pensando bem, talvez nao), quem esteve pior foram os pais. Entao nao é que começaram todos a cantar a cantiguinha que o seu filho era tao mau, que tinha tanto a aproveitar se ficasse na casa mais um pouco, e decidiram antes expulsar aquele que melhor se tinha portado, porque “era o que precisava menos”?

Assim nao dá, né?

quinta-feira, 30 de julho de 2009

4x60

A participaçao da Sara e a vitória da sua equipa na corrida de estafetas do Annual Crewe and Nantwich Town Sports Meeting foram especialmente importantes, por causa de um episódio menos agradável que tinha sucedido uns dias antes.

Tudo começou com o Sports Day da Saint Anne’s Primary School. Depois de adiado umas tres vezes devido a previsoes de mau tempo, o evento foi marcado de um dia para o outro, aproveitando uma aberta iminente. Nessa manha, eu entrei no atelier com uma colega que tem um miúdo da idade da Sara, e lembrei-me de comentar o facto. Ela ficou espantada de me ver ali; explicou-me que o Sports Day é um dia muito importante nas escolas do país, e que os pais costumam ir assistir e apoiar.

Naquela altura, já nao havia nada a fazer: a Sara ia mesmo ter que enfrentar a coisa sozinha. Como é a melhor ginasta da turma, e a única rapariga que corre, joga à bola e anda à bulha com os rapazes, deve ter-se convencido que ia ganhar as provas todas. E, assim, embora tenha ficado sempre em segundo ou terceiro, tudo isso lhe pareceu um falhanço clamoroso! À noite tinha o moral mesmo em baixo.

Mas o que a estava realmente a consumir, percebi depois, era que o Steve tinha dito que ela nao prestava, e que era estúpida. Ora, os míudos ingleses vao para a cama muito cedo, e já nao dava para eu ligar ao Steve. Com muito jeitinho, dediquei-me antes a reparar os estragos que ele causou. Quando senti que finalmente a minha filha me estava a ouvir, avisei que ia dizer uma coisa muito importante, talvez um bocadinho difícil de entender (espicaçar a curiosidade e lançar desafios funciona muito bem nestas idades, aviso para quem está a chegar lá), e depois afirmei: «Há certos comentários que qualificam melhor a pessoa que os produz do que aquela que era por eles visada».

Fez-se um silencio, que eu interpretei positivamente. «Podes repetir?», disse ela. Podia, com muito gosto, e nao me importei nada de ser interrompido a meio da frase, para explicar melhor algum significado. Depois houve um brilho nos olhos dela: tinha percebido. A prová-lo, disse-me assim: «Sabes que lá no Externato do Parque também dizíamos isso?» Fiquei em suspenso (eles também gostam de nos provocar, aviso para quem está a chegar lá), até que ela explicou: «Diziamos assim: Quem diz é quem é! É o mesmo, nao é?». Nao havia como dizer-lhe que nao.

Há que tempos que nao ouvia aquela frase! Há muitos anos (provavelmente também na escola primária), usava-se com frequencia. Mas, pelo menos no meu caso, a expressao caiu em desuso muito antes de eu ser capaz de articular aquele outro discurso, e nunca me apercebi da relaçao óbvia entre os dois. Agora só preciso de arranjar um equivalente sofisticado para substituir o tradicional: «Lava a cara com chulé!».

O final feliz desta história, já se adivinha, é que, graças aos tais segundos e terceiros lugares, seleccionaram a Sara para a equipa feminina das estafetas, que tao bem viria a representar a escola no grande evento municipal. Aí, os pais e a mana já conseguiram ir assistir. Um dia de sol maravilhoso; um parque relvado gigantesco; fair-play; uma verdadeira festa.

segunda-feira, 27 de julho de 2009

quinta-feira, 23 de julho de 2009

E pronto!

As meninas foram para Lisboa.
Nao sei se aí vao encontrá-las. Claro que em Lisboa também as há, mas saem pouco à noite. E, obviamente, nunca saem às duas da manha, sobretudo se estiver chuva, vento e frio como estava daquela vez. E depois é preciso ver que andam muito menos carregadas, e portanto nao fazem, ou seria preciso um silencio absoluto para se perceber que afinal fazem, muito baixinho: nhec, nhec...

terça-feira, 21 de julho de 2009

A oportunidade

Por que muitos estavam à espera


Muitos (pronto, uns quantos!) amigos me asseguram que, embora nunca tenham publicado um comentário, leem religiosamente o Capacete.
Eu, por princípio, acredito nas pessoas; mas nao posso por de parte a possibilidade de todas estas visitas ao blog serem do Rantanplan, que ainda nao terá aprendido a minimizar a página quando o patrao entra de repente pelo gabinete, e da PMarques, que agora está a trabalhar em casa, e ainda nao desistiu de fazer disto um messenger.
Entretanto, nao sei se repararam, mas o blog atingiu cem posts e, sensivelmente pela mesma altura, sem alarido comemorou um ano de vida. Um marco, e razao mais do que suficiente para tentar perceber se realmente.
Aqui na direcçao do Capacete, decidimos comemorar a data concedendo uma espécie de indulgencia plenária. Uma oportunidade fácil para todos esses fieis invisíveis purgarem a sua falta, fazendo-se uteis.
É que um amigo nosso vai daqui passar uns dias a Lisboa e, entre outros conselhos, pediu-nos uma listinha de bons restaurantes. Nao necessariamente caros, e com certeza nao sofisticados: simples e genuínos (typical, I would say).
Nós já andávamos bastante arredados desse circuito, e agora ainda mais. Nao querendo mandá-lo a nenhum indiano (disso há cá muito), só nos lembramos do Galito e dos Passarinhos, mas é pouco e sao ambos bastante arredados dos principais roteiros turísticos.
Portanto, vamos lá encher esta caixa de comentários com óptimas sugestoes!

quarta-feira, 15 de julho de 2009

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Walkers

Nao sei se já estou a fazer confusao, mas julgo que em Portugal também há uma marca de batatas fritas chamada Walkers!? Aqui, as Ti-Ti sao um produto delicatessen, e as Walkers é que lideram esse gigantesco mercado.

Estes tipos sao absolutamente doidos por tudo o que seja snack, nao importa se é salgado, doce, azedo ou agridoce, tem é que ser frito, embora também nao haja problema nenhum se for tufado ou torrado, cristalizado, caramelizado, seco, desidratado ou fumado, tem é que vir em pacotinhos de papel metalizado, isto se nao vier em saquinhos de plástico, nao importa que horas sejam, do dia ou da noite, nem onde é que estamos, basta olhar para o lado e é certo que há alguém à nossa volta a abrir uma dessas embalagens, a meter lá dentro dois ou tres dedos, a levá-los à boca e a lamber ou a sugar as falangetas, e entretanto a continuar a fazer o que estava a fazer, no atelier por exemplo continuam a tocar no teclado e no rato, cumprimentam alguém com um aperto de mao se for preciso, talvez roçando primeiro discretamente os dedos nas calças, e tudo isto se torna especialmente horrível porque todos eles tem um jardinzinho nas traseiras e passam o fim-de-semana de gatas a mexer na terra e no fertilizante e depois as unhas, e nao só as unhas mas também aquelas pelezinhas que se levantam à volta das unhas, ficam num estado tao miserável que a gente só consegue suportá-los se nao se puser a reparar nisso.

Dá ideia que, por o mercado ser competitivo, as marcas apostam mais em inovaçoes. Em Portugal isto das batatas fritas com sabor a outras coisas nunca chegou a pegar, mas aqui ainda estao convencidos que é possível melhorar a receita tradicional, e eu nem vou perder tempo a tentar elencar as variedades que se encontram à venda.
O que eu aqui vinha contar era da engenhosa campanha que a Walkers lançou no ano passado, chamada Do me a flavour. O desafio aos participantes era simples: inventarem um novo sabor, original, e baptizarem-no. No fim do prazo dado, a marca escolheu, de entre milhares, os seis sabores que pareceram comercialmente mais viáveis, produziram-nos e venderam-nos; depois os consumidores votaram o melhor. O criador do sabor eleito já ganhou uma pipa de massa, e parece que ainda vai receber 1% do volume de vendas.
Divertido, nao é? Eu, por essa altura, estava tao desempregado, que até dei por mim a pensar nisso seriamente. Mas nao é fácil compatibilizar um bom sabor com um sabor surpreendente e, depois de muito matutar, a minha melhor hipótese era mesmo Mexilhoes (eu sei, é nojento). Quando fui à webpage tentar fazer o upload da minha proposta, constatei que já havia dezenas de entradas com diferentes variantes de mexilhoes, e desisti. Mas, já agora, adivinhem qual foi o sabor escolhido! A sério, pensem lá um bocadinho antes de carregarem aqui.

Bom, os que foram à página já perceberam que outra das razoes pela qual a Walkers lidera o mercado é que tem o Gary Lineker a anunciá-las. É uma das pessoas mais consensuais em Inglaterra: as mulheres gostam dele pelas razoes que estao à vista; os homens perdoam-lhe isso, nao só porque ainda se lembram dos golos que ele marcou, mas também porque, entretanto, se tornou um competente pivot televisivo, e apresenta o Domingo Desportivo cá do sítio.
Pus-me a pensar há quanto tempo nao via o Gary Lineker. Se nao me engano, a última vez foi no Campeonato do Mundo do México em 1986, portanto passaram 23 anos! Como é que o homem tem esta figura, depois de tanto tempo? A comer batatas fritas nao é, com certeza!

quinta-feira, 9 de julho de 2009

Novas de Piccadilly



As fotos que aqui publiquei em Dezembro mostravam Piccadilly Garden praticamente deserto, transido de frio sob um manto de neve. Esse cenário mudou muito com a chegada do Verao.
Durante todo o dia, mas especialmente à hora de almoço, o relvado enche-se de gente estendida ao sol: a comer, a ler, a dormir, a conviver... Gente que vem, obviamente, preparada para o evento: um biquini debaixo da roupa de trabalho, uma toalha de praia ou uma manta de pic-nic, um livro, uma bola ou um disco voador. E, claro, nesta época a Camara reactivou a fonte do pavimento, que repuxa inesperadamente e com força, refrescando os mais encalorados e as turmas de liceais que por ali se reunem e aventuram em grande histeria.

Ve-se parcialmente nesta foto, a rematar o relvado, um pavilhaozito modesto com uma pala minúscula, de um arquitecto japones que é muito bom a descofrar betao. Sombrio e inóspito, esse espaço nesta latitude permaneceu para mim um mistério durante todo o Inverno.
Mas agora já percebi: a pala está ali porque o Verao às vezes aqui dura só uma ou duas horas, e as pessoas precisam de correr para qualquer lado quando o céu lhes desaba em cima, de um momento para o outro.
Do quinto andar em que trabalhamos, escusado será dizer, habituámo-nos a evitar olhar cá para baixo; mas, quando se ouve o trovao, corremos às janelas para assistir à debandada, e fingir (ainda que só por uns instantes) que estamos melhor lá dentro.

Há quinze dias, pela primeira vez desde que cheguei, tive que trabalhar no sábado. Às nove e meia da manha, ainda Piccadilly está estremunhado: é evidente que as noites de sexta nao acabam cedo. Mas no meio do relvado havia já grande movimentaçao, e um dispositivo impressionante voltado para os passeios laterais: carros de combate, jipes, tanques, baterias anti-aéreas, um helicóptero, e muita tropa.
Uma faixa enorme explicava que era o Dia das Forças Armadas. Havia também uns stands de recrutamento, num estilo algures entre o contentor showroom da vila utopia e a roulote do rei das farturas, e um letreiro que apregoava: Army – a life with no limits. Bom, eu nao gosto de ser desagradável, mas lembrei-me logo que quase todos os dias volta um do Afeganistao, que já nao diria o mesmo.

Nao se ve nesta foto, mas, num dos edifícios mais proeminentes de Piccadilly, de orgulhosa bandeira desfraldada num mastro inclinado da fachada, fica o Consulado Geral de Portugal. Um destes dias, à hora de almoço, dei lá um pulo, para ver se marcava uma entrevista de aconselhamento geral, porque há vários aspectos burocráticos da nossa mudança que ainda estao pendentes. Mas o porteiro nao me deixou subir.
Só com entrevista marcada. Mas é precisamente isso que eu venho fazer. Mas só pode subir se já estiver marcada. Entao pode dar-me o telefone, para eu marcar? Nao estou autorizado. Nao está autorizado a dar o número de telefone? Entao como é que as pessoas marcam a entrevista? Por internet. Por internet? Por correio electrónico. Entao pode dar-me o endereço, por favor? O endereço nao sei, mas se for à webpage e clicar em contactos, vai ver que aparece.
Eu sei que no 9º ano nao escolhi a área D e que, se calhar, se tivesse escolhido, a esta hora escusava de estar a perguntar isto, mas fui para as artes e agora nao sei: o Consulado, pago com os nossos impostos (nunca é demais referir), nao tinha o dever de prestar auxílio a um cidadao nacional que por aqui esteja em apuros, do género ser burlado e ficar sem dinheiro, ou perder a carteira com todos os seus documentos, ou coisa do género? Esses pobres coitados vao à webpage clicar em contactos e ficam à espera da marcaçao de uma entrevista? E nao haverá portugues a precisar do Consulado que nao tenha acesso à internet?
Claro que, mandado o mail, a resposta veio negativa. Nao marcam entrevistas de carácter geral. Pedem que especifique quais os actos consulares que tenho em vista, e recomendam que browse melhor a página, para ter uma ideia. Sinto que estao a gozar comigo. Lá respondo, lá espero resposta, lá respondo... Aos poucos, parece que estou a obter as informaçoes que precisava. Mas, neste fantástico mundo de ponta tecnológica, vai demorar meses até que esclareça tudo aquilo que poderia perceber em meia hora de conversa com alguém competente.
Sabem que eu detesto ser má-língua. Mas, se fazem tudo para nao receber as pessoas, escusam de pagar um balúrdio por uma renda de um andar gigante, num dos edifícios mais centrais da cidade. Ou será que, à boa maneira portuguesa, o consul já sub-alugou aquilo, e agora despacha o serviço todo a partir do seu Magalhaes, numa escrivaninha de pinho que tem lá em casa?

segunda-feira, 6 de julho de 2009

Pontualidade e decoro

(para o meu querido Rantanplan)


Um Pai Natal à moda antiga, daqueles que se preocupam em oferecer o presente certo à pessoa certa, pos-me no sapatinho do ano passado o romance “O Bom Nome”, de Jhumpa Lahiri. Talvez alguns o saibam, de ler o livro ou de ver o filme: é a história de duas geraçoes de uma família bengali, que emigra da Índia para os Estados Unidos.
Claro que a América é mais americana que a Inglaterra, e os bengali sao mais indianos que nós... Mas, mesmo assim, as afinidades com a nossa situaçao eram mais que muitas, e fizeram com que a Ana e eu disputássemos o livro quase página a página.


Ora, eu li-o quase todo no comboio, nas viagens diárias entre Nantwich e Manchester. E portanto, ao contrário do protagonista, nao fiquei surpreendido com o que lhe é dito por um estranho, logo no primeiro capítulo: que a Inglaterra é um país onde os comboios chegam a horas, e ninguém cospe no chao. Assim é: pontualidade e decoro! As duas casam tao bem que eu até estou a pensar sugerir à J.A. este título para uma sequela do outro romance (e, com sorte, talvez ela tenha algum para a troca, porque o da segunda aventura da Margot está encalhado).

Confesso que, ao princípio, até nao estava a achar o comboio especialmente cumpridor: foi duas vezes cancelado sem aviso prévio; um dia ficou parado duas horas por causa de um problema na linha; em 3 ou 4 ocasioes atrasou-se dez ou quinze minutos... Mas, ao mesmo tempo, comecei a reparar melhor em certos pormenores: a alcatifa e os estofos de boa qualidade, o trolley com chá e jornais, a completa ausencia de gangs juvenis...
Peguei num mapa e confirmei: porque fica ligeiramente afastado de Crewe, Nantwich escapa à esfera mais suburbana de Manchester, e é servido por uma linha de longo curso, que vem do sul do País de Gales. O comboio que eu apanhava às 8:16, e me deixava em Piccadilly às 9:10, saía de Milford Haven às 5:30! Claro que a minha complacencia para com aqueles percalços aumentou proporcionalmente, e passei a encarar cada chegada à tabela como um pequeno milagre diário.
Entretanto, já no princípio deste ano, preocupou-me a notícia de que os horários iam sofrer alteraçoes: é que eu nao posso deixar as meninas mais cedo na escola, nem posso chegar mais tarde ao trabalho... Felizmente, afinal, eram só uns ajustes: o meu comboio, por exemplo, deixou de ser às 8:16 e passou a ser às 8:19. Mas alguém, no seu perfeito juízo, imprimiria novas tabelas por causa disso? Aqui, fazem-no. E respeitam-nas.

Nao satisfeita com cumprir os horários, a ARRIVA TRAINS WALES (assim se chama a companhia, recentemente privatizada) parece empenhada em tornar as viagens agradáveis para as pessoas que transporta. Manias.
Para o efeito, tem permanentemente em curso uma campanha em que apela ao civismo dos passageiros. É certo que aqui, nao sei se por influencia da moral anglicana, se por culpa das normas de correcçao política, essas iniciativas parecem frequentemente querer ir longe demais. Mas esta tem sentido de humor, o que é, pelo menos, um princípio salutar.
O primeiro outdoor que vi lembrava que os funcionários da empresa tinham o direito de trabalhar sem ameaças nem intimidaçoes, e que todos os abusos seriam denunciados às autoridades. Mostrava o letreiro de uma esquadra de polícia, e avisava em letras grandes: Don’t end up in the wrong station.
Depois, reparei numa série de tres, que chamam a atençao para alguns comportamentos menos próprios (mas bastante comuns), parodiando com muita graça tres clássicos heróis Marvel.
E, por último, o meu preferido. Um exuberante cartaz cheio de flores, totalmente preenchido com corolas e pétalas de todas as formas, pleno de cor-de-rosa, roxo, carmim, lilás, grenat, encarnado e laranja. Em grande destaque, diz: Somethings are obviously too loud!; e depois, em letras muito pequeninas, acrescenta: Be considerate to fellow passengers, and keep noise down when traveling.

terça-feira, 30 de junho de 2009

M.S. perdoado

Sobre a estranha relaçao que os britanicos tem com o resto do mundo, desde a queda do império até à afirmaçao do ingles como lingua universal, passando pelo inegável cosmopolitismo das grandes cidades e pelo surpreendente provincianismo dos nativos, podia escrever-se um blog inteiro.
Neste post, queria só falar de um aspecto particular desse vasto tema, que é a sua total incapacidade para falar uma língua estrangeira.
Embora recentemente as escolas tenham começado a dar preferencia ao espanhol, as pessoas mais velhas (dizem que) aprenderam frances. Ora eu, que já esqueci quase tudo o que sabia, mas ainda guardo da minha mae uma pronuncia digna do Eliseu, farto-me de rir com eles.
Primeiro foi a I.B., coitada, a tentar aconselhar-me a escrever qualquer coisa na frente de um envelope prestes a ser expedido. Como eu nao percebia mesmo, acabou por pegar numa caneta e escrever ela: Par Avion.
Segundo foi o M.G., que é Quiz Master num pub dos arredores, a desafiar-nos: onde é jogado o Open de França em ténis? O J.H., perspicaz, disse Paris; e eu, embora tenha dito tres vezes Roland Garros exactamente como o René Lacoste, juro que nao consegui fazer ninguem compreender que estava a dar a resposta certa.
Terceiro foi o J.W., meu patrao, que quis oferecer-me um prémio de produtividade; mas, nao podendo esticar-se muito em termos pecuniários, propos-me tres dias «in loo». Tres dias «in loo»? Obviamente, pareceu-me despropositado, e pedi que esclarecesse. Afinal, era «in lieu»: «holidays in lieu of money prize». «Uma expressao francesa», explicou, «que aqui usamos para dizer instead of». Procurei fazer-lhe ver que nao havia nada de errado em dizer instead of.