quarta-feira, 30 de setembro de 2009

Postal No2


Nanteviqque, 26 de Agosto de 2009

Caros amigos,

Cá vai, provavelmente para chegar atrasado, um postalzinho à moda antiga, mostrando uma vista do centro de Nanteviqque, para onde voltei sozinho e a muito custo, depois daqueles pouquíssimos dias de férias com as meninas em Sesimbra.

Muito de vós poderao pensar que agora é que começaram as minhas verdadeiras férias, e eu também pensei, mas a verdade é que, ao fim de dois ou tres dias, a coisa se torna aborrecida de morte. Nada melhor, portanto, do que manter-me ocupado: durante a semana no atelier, durante o fim-de-semana aqui por casa.

Uma das coisas que estava nos meus planos desde há meses era pintar as ombreiras da porta da casa de banho, esfoladas pelos topos de uma barra fixa que ali tinha montado (é verdade, nao fui lá muito esperto) para a Sara treinar elevaçoes.

Eu, até por obrigaçao profissional, tenho um certo conhecimento destas coisas da bricolage. Em termos práticos, porém, nao sou muito melhor do que um certo Professor Catedrático da Universidade de Coimbra, com doutoramento em Teoria Geral do Direito da Personalidade. Mesmo assim, atirei-me ao trabalho.

No sábado de manha, visitei pela primeira vez uma dessas lojas, que aqui sao muitas e gigantescas, inteiramente dedicadas ao DIY: le-se [di-ai-uai] e significa Do It Yourself. O DIY (já desconfiava, mas pude comprovar lá dentro) move multidoes. Nao é preciso ser o A.B., para perceber que isso tem raízes histórico-culturais e também razoes sócio-económicas: a tradiçao da jardinagem, o movimento de Arts and Crafts, o culto do tempo livre produtivo, o custo proibitivo da mao de obra qualificada, entre outros factores, contribuiram para a dimensao do fenómeno.

Eu confesso que também gostei de perder tempo naqueles corredores, até ter a certeza de que trazia a tinta adequada e o diluente próprio, a melhor das trinchas mais baratas, a fita suficiente, a lixa de grao certo. Aproveitei para ver coisas que nao preciso e outras que nem sequer percebo para que servem ou como funcionam. Gramei de vestir as roupas velhas e de assobiar.

O trabalho ficou aceitável. Ninguém percebe que houve ali nova demao e, além disso, nao deixei pingos brancos na alcatifa do corredor (aqui o The Guardian é tao grande como o Expresso). O que eu nao sabia era que aquilo era apenas o começo; por estas bandas, muito mais do que um hobby, o DIY é uma filosofia de vida, e estende-se para lá de tudo o que eu podia imaginar.

Vejam só que no dia seguinte me caiu uma coroa provisória (desculpem entrar em miudezas) e o meu irmao avisou logo que nao vinha cá para me colar isto. Depois de falar com um colega que trabalha em Londres, disse-me que por uma consulta regular ia esperar meses e que duma urgencia provavelmente seria corrido a pontapé. Mas aconselhou-me a passar na farmácia, porque era natural que lá vendessem o cimento próprio e talvez eu conseguisse fazer a coisa sozinho.

Ainda sem saber se estava a ser gozado, fui ver. Era verdade. Chama-se RECAPIT, vem numa embalagem verde com um potezinho e um pincel minúsculos, custa £4.00 e traz atrás as indicaçoes: lave o dente; raspe cuidadosamente todos os restos de cimento da coroa e verifique o seu posicionamento; lave, enxague e seque; passe uma fina camada homogénea de cola no interior da coroa; humedeça o dente; coloque a coroa e trinque com força repetidamente; se sentir dor retire e repita o procedimento, ou consulte o seu dentista; se se sentir confortável mantenha a pressao durante cinco minutos; limpe o excesso de cola à volta; deixe secar e pode comer ao fim de uma hora.

Alucinante, nao? Mas resultou. Entretanto, por curiosidade (e arriscando talvez um pouco os vossos empregos) deixem-me só acrescentar que na prateleira da farmácia estava outro produto do mesmo fabricante, destinado a preencher os buracos dos dentes cariados quando a massa do dentista cai. Vem numa embalagem laranja e chama-se REFILLIT. Já consigo imaginar as instruçoes: sente-se em frente ao espelho, com a cabeça ligeiramente inclinada para trás; abra bem a boca e aponte uma lanterna para o interior; segure a broca com a mao direita e cuidadosamente...

Bom. Saúde para todos, sao os melhores votos deste vosso amigo.

(assinatura ilegível)

sábado, 26 de setembro de 2009

Rescaldo

Pronto, andávamos curiosos e já ficámos a saber: há cerca de 36% de portugueses que nao leem o Capacete. Ou, pior, leem e nao seguem as orientaçoes...
Estou desanimado. Nao sei que vos diga, excepto que Nanteviqque é uma terra muito simpática, se alguém estiver a pensar pedir asilo político.

sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Hugh Laurie

Quem é fan daquele médico inteligente, casmurro, dedicado, sarcástico, charmoso, egoísta e coxo, chamado Dr. House, levanta o braço!
E quem se lembra daquele tipo alto, desengonçado e burro como uma porta, que fazia de rei e de jovem tenente no Black Adder, levanta o outro!
Ah, pois é...

quarta-feira, 23 de setembro de 2009

Verbum dei

Julgo que já contei que aqui o diácono local se chama Mascarenhas: o apelido é portugues, mas basta olhar para ele para perceber que veio de Goa. A pele castanha escura contrasta com o cabelo e a barba grisalhos, próprios da idade; no altar, com os paramentos vestidos, tem um ar asceta e profético (um pouco ao contrário do pároco, que é um irlandes bonacheirao). Por isso, quando se aproxima do púlpito para uma das suas homilias meticulosamente preparadas, toda a gente faz silencio e presta atençao.

No domingo passado, começou assim: «O meu pai, embora falasse portugues fluentemente, nunca mo ensinou. Só lembro, e creio que ainda consigo reproduzir, uma frase simples, mas plena de significado, que ele repetiu durante toda a sua vida, e com especial insistencia nos ultimos anos.». Neste ponto, tinha a assembleia em suspenso. Muita gente daqui passa férias em Portugal, talvez alguns acreditassem que iam conseguir entender; a Ana e eu estávamos mortos de curiosidade.

Entao ele realmente disse qualquer coisa, mas ninguém percebeu nada: nem os ingleses nem nós. Apercebendo-se de que nao tinha sido compreendido, nem sequer pelos portugueses na terceira fila, fitou-nos directamente e fez outra tentativa. Desta vez falou muito devagar, separando todas as sílabas, e nós, estupefactos, ouvimos distintamente : «POR-A-MOR-DE-DEUS, NAO-VO-TEM-NO-SÓ-CRA-TES!».

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

La menina

Nao chove vai para dez dias. Quando nao chove, os percursos a pé, de casa para o comboio e do comboio para casa, tornam-se inadvertida e quase imperceptivelmente mais lentos, e eu reparo em coisas que nunca tinha reparado.

Um destas manhas, por exemplo, reparei numas garrafinhas de leite deixadas na soleira de uma porta: leite fresco do dia, levado a casa a tempo do pequeno-almoço. Gostei da ideia; quando trocarmos do apartamento para a moradia e tivermos o nosso próprio driveway, nao me posso esquecer de comprar um roupao para estas ocasioes.

Uma destas tardes, vinha pelo canto do olho a espreitar para dentro das casas das pessoas. Eram aqueles minutos do lusco-fusco, em que a luz cá fora já era pouco mais do que lá dentro. Nas vidraças, havia simultaneamente reflexo e transparencia, sobrepondo a vista do exterior com a do interior.

Vinha a olhar para naperons e porcelanas, abajours, papel de parede, e outros objects inanimados, quando de repente, quase com um susto, deparei com uma rapariga à janela, demasiado chegada ao vidro e estranhamente imóvel. Se fosse uma loja, no centro da cidade, seria um manequim.

Num segundo relance, percebi que ela estava em frente a um espelho, daqueles pequenos redondos que giram dentro de um aro fixo e tem zoom in de um lado e zoom out do outro. Portanto, embora ela estivesse à janela, nao estava a olhar cá para fora; estava apenas a aproveitar o resto da luz natural para se maquilhar, e quedara-se absorta no sua própria imagem, que eu sabia reflectida (embora nao a pudesse ver, mas era fácil de adivinhar) num plano intermédio entre o seu rosto e o vidro da janela.

Tudo muito rápido (que eu nao sou de ficar especado a olhar para as pessoas, a menos - claro- que sejam giras), dei mais um passo e segui em diante. Mas, no instante em que passei em frente ao peitoril, ainda vislumbrei, junto com o meu reflexo no vidro da janela, à transparencia para o interior, um grande plano de mim reflectido na face de trás daquele espelho, que do outro lado reflectia a cara que eu via de frente, embora ela a mim nao me visse, porque estava demasiado reflexiva.

Só faltou um espelho na parede do fundo, atrás da rapariga. Ainda assim, estou certo de que DV teria apreciado a cena, e provavelmente feito qualquer coisa com ela. Pela minha parte, fica só o post, que as tintas aqui sao caras.

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Prova dos Nove

E não é que está a dar certo?
Muitos Parabéns!

Postal No1


Sesimbra, 15 de Agosto de 2009

Caros amigos,

Cá vai, provavelmente para chegar atrasado, um postalzinho à moda antiga, mostrando uma vista da baía de Sesimbra, onde viémos passar a maior parte das nossas férias.

Pus-me a fazer contas, e já lá vao mais de 30 anos, desde o primeiro Verao em que para aqui vim. A praia nao mudou nada: o mar calmo e o areal curto fazem dela o lugar perfeito para os pais trazerem tranquilamente os filhos pequenos. É uma praia familiar (aliás, a minha família está bastante presente), onde toda a gente se conhece do toldo ao lado, deste ano ou do ano passado.

Uma das coisas que faz a praia segura é que a Camara Municipal mantém os homens sinistros e os loucos perigosos à distancia, graças à inovadora política de lhes oferecer gabinetes e ocupaçao permanente, como vereadores do urbanismo, do transito e do espaço publico.

Meus amigos: do paredao para fora, está tudo perdido! A marginal, que tinha um equilíbrio simpático de passeio, estacionamento, faixa de rodagem e pequenas esplanadas, foi “conquistada para os peoes”. Mas um passeio daquela largura nao se justifica nem em frente aos Pasteis de Belém e, para nao parecer vazio, toca de enche-lo com bancos, palmeiras, brise-soleils, ecopontos, moopies e toda essa tralha urbana.

Quem precisa de vir de carro para a praia segue apertadinho entre ciosos pinos, no pára-arranca das grandes cidades (porque as cargas e descargas precisam de se fazer, e a largura da via nao permite mesmo um carro passar ao lado do outro) até ao estacionamento em altura mais estrambólico que é possível imaginar (nem vou tentar explicar, digo só que é preciso descer se queremos subir, e que o contrário também é verdadeiro).

Mas o pior ainda é para quem vai a pé. Claro que os senhores repavimentaram tudo, e agora o passeio é feito com um mosaico de granito serrado, com 2 pífios centimentos de espessura, colado com cimento. Cinzentinho escuro à arquitecto moderno, aquece ali ao sol de uma maneira que nunca mais ninguém saiu da praia descalço; está todo ratado por tampas de esgoto e sarjetas semeadas ao Deus-dará, e claro que nas zonas mais frágeis (por exemplo nas lindas molduras de canteiros com cantos a 45º) já está todo partido e a levantar, fazendo cair os mais desprevenidos, alguns deles meus queridos.

Portanto, voces estao mesmo a imaginar-me, entro na praia a bufar e saio a bufar da praia. Nao consigo parar de pensar na calçada antiga que lá estava, tao docemente amaciada pela brisa, pela água salgada e pelos pés com areia de tantas geraçoes. Onde é que aqueles brutos criminosos terao ido despejar esse entulho? Eram umas boas centenas de metros cúbicos!

Bom. Saúde para todos, sao os melhores votos deste vosso amigo.

(assinatura ilegível)

PS: arquitecto que lá vá nao pode deixar de dar um pulo à frente do mercado, para ver o incrível posto de transformaçao que ali fizeram, aproveitando um “espaço vago”. Juro. Vale mesmo a pena.

segunda-feira, 14 de setembro de 2009

Violencia Doméstica

Já devo ter explicado que aqui a primária começa aos quatro e dura sete anos. Isso fez com que as minhas filhas fossem colegas de escola já este ano lectivo; em Portugal, tal só aconteceria com a Matilde no 7º e a Sara no 12º (se nenhuma entretanto reprovasse).
De modo que estao as duas entusiasmadíssimas, a aproveitar ao máximo este momento. Para a Matilde, é uma promoçao enorme; para a Sara, é a ocasiao de se afirmar (e ser aceite) como mana sábia e responsável. Para já, está a correr muitíssimo bem.
Mas chegar ao fim do dia e obrigar aquele pirralho a sentar-se à mesa para fazer os trabalhos de casa é uma violencia. O braço mal chega ao tampo, a cabeça está sempre a cair para a frente e as vogais parecem satélites desintegrados à deriva no espaço da folha pautada. Só apetece dar-lhe colo, enche-la de beijinhos e esquecer o assunto.

sexta-feira, 11 de setembro de 2009

Foto

Nao percebo tanta curiosidade. Mas claro que faço a vontade aos meus amigos.

quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Fim de Férias

Quando é que o Verao realmente acaba pode ser uma questao discutivel. Por aqui ainda restam umas andorinhas (a mais irritante das quais resta debaixo do beirado mesmo por cima da nossa varanda de sacada), mas a minha pele, torrada à pressa em quinze dias de praia, já se foi embora toda.

Seja como for, as férias acabaram mesmo. Talvez nao quando regressei sozinho, a meio de Agosto, mas definitivamente agora, que o contingente feminino se juntou a mim. Com elas, voltaram também a esta casa a alegria, a algazarra, a desarrumaçao e aquecimento central: aqui entrámos todos em modo de Inverno, exactamente no dia 2 de Setembro.

Entre as várias coisas que a Ana está a por em ordem, naturalmente incluo-me eu. Embora surpreendida por verificar que eu sobrevivi às minhas próprias técnicas culinárias, voltou a assumir essa nobre tarefa. Deplorou o meu método de virar do avesso para voltar a usar a roupa interior, e cancelou a conta na engomadoria. No fim-de-semana deitou para o lixo todos os meus dois pares de sapatos, levou-me às compras e marcou-me hora no cabeleleireiro.

Comprar os sapatos até corre bem. Para mim, é fácil entrar na sapataria e identificar cerca de 100 modelos que acho que me vao bem. A Ana, por sua vez, tem o condao de discernir (decidir?) quais sao os 49 que sao de gay e os 49 que sao de velho, e portanto quais sao os únicos dois que sao “a minha cara” - expressao um pouco estranha, agora que a escrevo, tratando-se de sapatos: vou indagar.

Cortar o cabelo é bastante mais penoso. Admito as minhas limitaçoes de vocabulário, que aliás já vinham de Portugal, mas que aqui se tornam ainda mais flagrantes. Sentindo talvez a rédea demasiado solta, o cabeleleireiro (sim, é um salao unisexo e isso provavelmente nao ajuda) passou mais tempo com a escova e o secador do que propriamente com o pente e a tesoura. Vencem-me sempre por exaustao; nunca, em toda a minha vida, depois de me mostrarem com o espelhinho como fiquei a toda à roda, pedi qualquer alteraçao: está sempre bem.

Claro que, desta vez, nao estava. Saindo à pressa do cabeleireiro, e vendo-me de relance numa montra de Nantwich, confundi-me com aquela actriz que fazia o “Crime, disse ela”. Fui ter com a família ao Tea Lounge. A Ana ainda disfarçou, mas as meninas foram crueis: a Matilde disse que eu parecia a Mrs Mosley lá da escola, e a Sara acrescentou que lhe chamavam “cabeça de melao”. Ele há coisas que uma pessoa nao devia ser obrigada a ouvir.

Mas tudo tem um lado positivo: essa alcunha, por exemplo, fez-me pensar que estava na hora de recomeçar as actividades aqui no Capacete.

terça-feira, 1 de setembro de 2009

Ronaldo e Cicciolina

Bom, talvez o título seja um pouco enganador. Queria só chamar a atenção para o iminente recomeço deste blogue, agora que a vida está prestes a voltar à normalidade.