quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Ora, bolas!

Apercebi-me agora que, àquele post ali em baixo, devia antes ter chamado "O Corte Ingles".
Mas este blogue já está suficientemente empancado; se me ponho a emendar os antigos em vez de escrever os novos...

sábado, 14 de novembro de 2009

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

As palavras

Provavelmente já passou mais de um ano desde que a Sara me perguntou, pela primeira vez, quando e como é que apareceram as palavras, e como é que as pessoas se entendiam, antes de aparecerem as palavras.

Eu, claro está, aumentei o volume do auto-rádio e fingi que nao tinha ouvido nada. Mas sabia que estava apenas a adiar o assunto; estas dúvidas, quando se metem na cabeça dos miúdos, sao piores do que os piolhos: nao há maneira de as tirar de lá.

De maneira que, ao fim de umas poucas tentativas da sua parte, e eu próprio em várias tentativas da minha parte, lá consegui esboçar uma resposta que pareceu convence-la. Expliquei que, na base da linguagem, está a capacidade fisiológica de articular sons complexos, associada às necessidades de comunicaçao primárias para a sobrevivencia dos indivíduos e para a organizaçao da vida em sociedade. Expliquei que as palavras foram (e vao) surgindo aos poucos, uma a uma, à medida que foram (e sao) precisas em cada contexto, e que se modificam ao longo dos tempos, num processo de assimilaçao por um número cada vez maior de indivíduos, que torna a linguagem uma ferramenta eficaz e um corpo vivo. Só nao expliquei o signo, o significado e o significante porque isso também a mim me faz um bocado de confusao.

Ora este tema voltou à baila à mesa de jantar, num dia em que tínhamos convidado um casal de espanhóis nossos vizinhos lá para casa. Professor em Cambridge, ele revelou-se um daqueles tipos fascinantes-irritantes; nesse serao estava particularmente empenhado em conquistar a simpatia das crianças e fez questao de apresentar à Sara a sua teoria. Os primeiros a aparecer terao sido alguns nomes fundamentais: Eu, Tu, Urso, Gruta (e reparem só nas possibilidades que isto já encerra...). Depois, provavelmente, uns poucos verbos, que no fundo sao nomes de acçoes: comer, copular, dormir, fugir. Mais tarde, os adjectivos: importantes para distinguir, por exemplo, se o urso está assado ou se está furioso. E, por fim, esses produtos elaborados e luxuosos que sao os advérbios.

Fosse lá como fosse, a Sara parecia ter arrumado o assunto. Por isso estranhei que, bastante tempo depois, voltasse a perguntar-me, lá do banco de trás: «Oh pai, mas afinal, quando ainda nao havia palavras, como é que as pessoas...». Eu julguei que a pergunta era outra vez «como é que as pessoas se entendiam?» e, revirando os olhos, já ia dar-lhe a resposta do costume, quando ela acabou a sua frase: «como é que as pessoas pensavam?».

Aí, meus amigos, íamos tendo um acidente! Nao tenho palavras para descrever o meu orgulho naquela miúda: de alguma forma, ela percebeu que existe uma relaçao intrínseca entre a linguagem e o pensamento. Eu, que cheguei a essa mesma conclusao mas lá mais por volta dos vinte anos, encho-me de esperança no seu futuro.

Quando tinha a idade dela, nao só tais coisas nao me passavam pela cabeça, como todo o meu pensamento estava num estado básico, inteiramente dirigido para a acçao e estruturado em torno de um único conceito: «os ratos» (o nome do baldio em frente ao prédio, que o empreiteiro nunca ajardinou devidamente, e que era sinónimo de jogo de bola). Se nao estava nos ratos, eu só queria saber quando é que podia ir para os ratos. Se estava nos ratos, todo eu era suor e instinto, e só hesitava entre duas coisas: chutar rasteiro em força ou alto em jeito. Palavras para quê?

quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Anda-se a criar uma filha para isto

Papá (assim de repente) - Matilde, tu sabes qual é o teu apelido, nao sabes?

Matilde (com um ar comprometido) - ...

Papá (incrédulo) - Nao sabes? Oh Matilde, nao sabes qual é o teu apelido?

Matilde (embaraçada) - Nao...

Papá (desconfiado de outra coisa) - Matilde, what's your surname?

Matilde (de rosto subitamente iluminado) - Siúza!

Dedo? Qual dedo?

O pai-de-todos da esquerda estava tranquilamente debaixo do pao, quando todos os da direita se cerraram em torno do cabo da faca de pao e, numa inexplicável descordenaçao de hemisférios, a puxaram para baixo e para trás, com um movimento decidido.

Lembro-me bem, na altura em que mudámos para esta casa, de andarmos pelas lojas do ménage com a nossa lista de coisas imprescindíveis. Entre elas, uma faca de pao. Lembro-me que, por mais duas ou tres libras, podíamos ter trazido um conjunto de cinco facas chinesas que incluía a faca de pao e uma base em madeira. Mas, sem necessidade de tanta lamina e com pouco espaço na bancada, decidimos manter os planos e comprar uma única, boa, faca de pao. E lá boa é ela. Na verdade, até se revelou uma faca multi-usos, que nao só corta o pao, como corta a pele e a carne; e estou certo que também teria cortado a unha, se tivesse conseguido atravessar a falangeta (benditos canecos de leite que a minha mae me obrigou a engolir).

Naturalmente, soltei um grito inumano. As meninas apareceram aterrorizadas na cozinha, a chorar só de imaginar o que podia ter-se passado. Já a Ana, que estava ali de volta do fogao (mas, como sempre, com um olhinho de lado a controlar-me), manteve a calma e julgo que, entre dentes, a ouvi dizer: «Isso é que é burro!»

Enquanto eu me esvaía em sangue para dentro do lava-loiças, tentando ao mesmo tempo manter uma cara descontraída para sossegar as pequenas, a Ana rectificava temperos. Finalmente, perguntou-me se eu precisava de alguma coisa e eu pedi-lhe, por favor, um pano para tentar estancar a hemorragia.

Demorou um bocado lá para dentro, até concluir que nao tínhamos em casa nenhum trapo adequado; quando voltou à cozinha, trazia na mao uma camisa da GAP acabada de passar a ferro e, com cara de Martim Moniz, disse-me para usar aquilo. Para meu próprio bem, recusei, e convenci-a a trazer-me antes umas das minhas boxers velhas.

Quando me viu enrolá-las à volta do dedo, começou a abanar a cabeça e a dizer que eu nao sabia apertar uma ferida: parece que há várias maneiras de apertar feridas, e nem todas sao boas... Aliás, nao imaginam a quantidade de coisas, assim simples e quotidianas, que ao longo destes anos o meu amor já me explicou que eu nunca soube fazer antes de ela me ensinar.

Justiça lhe seja feita, nessa altura a Ana prestou-se a ajudar-me mesmo e vinha até apertar a minha ferida; mas aí comecei eu a esbracejar, para que me saíssem todas da frente: é que a minha tensao arterial já estava ao nível do linóleo e o meu queixo nao tardava a ir fazer-lhe companhia.

Cambaleando às suas ordens, fui estender-me no chao da sala, com as pernas em cima do sofá e com a mao em cima do peito, para nao pingar a alcatifa do senhorio. Enquanto no sótao a Ana vasculhava os sacos ainda por arrumar à procura de pensos, as meninas acomodaram-se à minha volta. A Sara, entediada com aquele espectáculo, ligou a televisao à procura de outro. A Matilde foi buscar papel e canetas, sentou-se à chines e começou a puxar-me o braço para que eu pintasse consigo.

Finalmente a Ana desceu e, durante os minutos seguintes, por entre chacota e recriminaçoes, lá me fez um curativo. Depois cedeu às recomendaçoes da nossa filha mais velha, que passou o tempo todo a pedir-lhe que nao se distraísse com o jantar ao lume, e voltou para a cozinha, sem ficar a assistir à minha recuperaçao.

Quando me senti capaz de sobreviver sozinho, levantei-me e arrastei-me em busca da minha fatia de pao: com a fraqueza com que estava, nao podia esperar pelo jantar. Barrei-a abundantemente com queijo da serra e meti-a na boca em duas dentadas. Estava ali apoiado no canto da bancada, sentindo-me restabelecer a cada pedaço que engolia, quando a Ana me perguntou: «Entao, agora mastigas de boca aberta?»

Tréguas? Que é lá isso? Eu às vezes acho que hei-de estar um dia com os pés para a cova e que nessa altura a Ana me há-de dizer para manter as costas direitas. Mas, o que é que havemos de fazer, é a nossa natureza: nao só lhe pedi desculpa como, uma hora depois, já estava a lavar a loiça toda do jantar, apenas com a mao direita.

Só nao consegui foi esconder um pequenino sentimento de vingança, quando reparei que tinha salpicado de sangue os cortinados da cozinha: é que, se a loiça é comigo, a roupa é com a Ana. O episódio ainda nao está encerrado e quem ri por último ri melhor: só tenho que ver se estou por perto quando estiver a passá-los a ferro.

Claro que a KT e o MD sao mais giros que nós, e fizeram isto tudo em grande, com o dobro da graça e da perversidade. Mas é preciso ver que eles tinham toda uma equipa de produçao a apoiá-los, e um orçamento hollywoodesco. À nossa escala, a Ana e eu damos o nosso melhor na guerrilha doméstica.