Voltámos ao mesmo. A Ana com a nobre missao de amamentar um bebé, eu com a ridícula incumbencia de o fazer arrotar. De dia, vamos alternando e mantendo a compostura; mas à noite tudo muda: pelas duas começamos a desentender-nos sobre aquilo de que ele precisa e às cinco em ponto estala a discussao sobre afinal quem é que teve a ideia.(Escusado será dizer como é que acaba. Os meus filhos sao os únicos bebés do mundo que arrotam mais do que mamam; arrotam em seco, os pobrezinhos, para fingir que estao satisfeitos. É muito triste.)
Lembro-me de passar horas com a Sara, andando para trás e para a frente no corredor da casa da Rua Infantaria 16, de pé descalço no chao de corticite, a cantarolar no escuro cantigas inteiras sem conseguir sair da mesma nota. Lembro-me da facilidade com que a carregava, e sobretudo da naturalidade com que ela em mim se encaixava: pernas dobradas no meu braço, rins apoiados pela minha mao livre, barriga para baixo sobre o meu ombro, cabeça ligeiramente arqueada para trás e para o lado, encostada ao meu pescoço. Podia durar a noite toda: quando temos 28 anos, e é o primeiro filho, é um prazer.
Cinco anos depois nasceu a Matilde. Foi com espanto que a vi crescer, ganhar peso aos poucos e assumir exactamente a mesma postura da irma. Como se houvesse uma memória hereditária ou, talvez mais propriamente, uma inescapável complementaridade anatómica entre pais e filhos; entre corpos de peso e tamanho tao diferentes, que a natureza caprichosamente desenhou para que se entrelaçassem dessa forma. Podia durar a noite toda: quando temos 33 anos e o nosso filho sobreviveu, é um prazer.
Agora nasceu o Miguel e (embora aqui seja opcional) a Ana insitiu em traze-lo para casa. Olhando para o tamanho do menino, ve-se logo que a mae está a cumprir o seu papel na perfeiçao. Mas os passeios nocturnos com o pai nao estao a correr assim tao bem. Eu acho que me lembro da posiçao certa e esforço-me por mante-lo lá. Mas ele torce-se, empurra-me e, quando eu me canso, escorrega-se-me pelos braços, até ficar com a cabeça ao nível do meu peito. Descobriu ali na zona abdominal uma ligeira saliencia, onde gosta de se sentar à chines, vejam só!
Enquanto ando à roda na sala, dou por mim a pensar: sao os meninos que sao diferentes das meninas? é só este que é especial? fui eu que perdi o jeito? mas, no fundo, sei que a resposta é outra, e mais cruel: é que a minha anatomia já nao é o que era!