quarta-feira, 11 de novembro de 2009

As palavras

Provavelmente já passou mais de um ano desde que a Sara me perguntou, pela primeira vez, quando e como é que apareceram as palavras, e como é que as pessoas se entendiam, antes de aparecerem as palavras.

Eu, claro está, aumentei o volume do auto-rádio e fingi que nao tinha ouvido nada. Mas sabia que estava apenas a adiar o assunto; estas dúvidas, quando se metem na cabeça dos miúdos, sao piores do que os piolhos: nao há maneira de as tirar de lá.

De maneira que, ao fim de umas poucas tentativas da sua parte, e eu próprio em várias tentativas da minha parte, lá consegui esboçar uma resposta que pareceu convence-la. Expliquei que, na base da linguagem, está a capacidade fisiológica de articular sons complexos, associada às necessidades de comunicaçao primárias para a sobrevivencia dos indivíduos e para a organizaçao da vida em sociedade. Expliquei que as palavras foram (e vao) surgindo aos poucos, uma a uma, à medida que foram (e sao) precisas em cada contexto, e que se modificam ao longo dos tempos, num processo de assimilaçao por um número cada vez maior de indivíduos, que torna a linguagem uma ferramenta eficaz e um corpo vivo. Só nao expliquei o signo, o significado e o significante porque isso também a mim me faz um bocado de confusao.

Ora este tema voltou à baila à mesa de jantar, num dia em que tínhamos convidado um casal de espanhóis nossos vizinhos lá para casa. Professor em Cambridge, ele revelou-se um daqueles tipos fascinantes-irritantes; nesse serao estava particularmente empenhado em conquistar a simpatia das crianças e fez questao de apresentar à Sara a sua teoria. Os primeiros a aparecer terao sido alguns nomes fundamentais: Eu, Tu, Urso, Gruta (e reparem só nas possibilidades que isto já encerra...). Depois, provavelmente, uns poucos verbos, que no fundo sao nomes de acçoes: comer, copular, dormir, fugir. Mais tarde, os adjectivos: importantes para distinguir, por exemplo, se o urso está assado ou se está furioso. E, por fim, esses produtos elaborados e luxuosos que sao os advérbios.

Fosse lá como fosse, a Sara parecia ter arrumado o assunto. Por isso estranhei que, bastante tempo depois, voltasse a perguntar-me, lá do banco de trás: «Oh pai, mas afinal, quando ainda nao havia palavras, como é que as pessoas...». Eu julguei que a pergunta era outra vez «como é que as pessoas se entendiam?» e, revirando os olhos, já ia dar-lhe a resposta do costume, quando ela acabou a sua frase: «como é que as pessoas pensavam?».

Aí, meus amigos, íamos tendo um acidente! Nao tenho palavras para descrever o meu orgulho naquela miúda: de alguma forma, ela percebeu que existe uma relaçao intrínseca entre a linguagem e o pensamento. Eu, que cheguei a essa mesma conclusao mas lá mais por volta dos vinte anos, encho-me de esperança no seu futuro.

Quando tinha a idade dela, nao só tais coisas nao me passavam pela cabeça, como todo o meu pensamento estava num estado básico, inteiramente dirigido para a acçao e estruturado em torno de um único conceito: «os ratos» (o nome do baldio em frente ao prédio, que o empreiteiro nunca ajardinou devidamente, e que era sinónimo de jogo de bola). Se nao estava nos ratos, eu só queria saber quando é que podia ir para os ratos. Se estava nos ratos, todo eu era suor e instinto, e só hesitava entre duas coisas: chutar rasteiro em força ou alto em jeito. Palavras para quê?

8 comentários:

pmarques disse...

e a resposta, capacete???
que a sara é um pequeno prodígio nunca duvidámos, pelo contrário. mas bom era ter a tua explicação não vão os prodígios que se passeiam cá por casa lembrar-se disso antes da universidade (o tubarão, não. é mais "ratos"!)

rantanplan disse...

Linda, e esperta como um rato!!!

na adolescência, é dizer-lhe para não dizer palavrões, que isso estraga o pensamento!

capacete disse...

A minha resposta, para este género de pergunta? Um estojo de maquilhagem! Vais ver que o teu prodígio também adora, e nunca mais se poe com intelectualices... O tubarao é que parece no bom caminho.
Palavroes? Passou essa fase na semana passada. Agora está a ler "Os filhos da droga".

rantanplan disse...

Tu és um urso, vai prá gruta!, disse a pré-histórica ao pré-histórico.

Acertei?

rantanplan disse...

ganda urso, cortaste outra vez a falanginha com a catana?

Não terá sido a primeira, mas uma das primeiras...

capacete disse...

já estava a achar estranho que voces resistissem a montar umas frasezinhas com aquelas palavras.
afinal, foram com certeza as mulheres a inventar a linguagem... ou, pelo menos, foram elas as primeiras a dar-lhe um uso nao exclusivamente utilitário.

rantanplan disse...

Não exclusivamente utilitário? Não exclusivamente utilitário? Diz-me lá coisa mais utilitária do que pôr o pré-histórico na ordem?

JoanaM disse...

Posso dizer que este é um dos meus post favoritos desde que leio o capacete. Adoro as perguntas da Sara e a tua forma de lhe responder e o teu orgulho! E a pergunta final é absolutamente fantástica. Também porque venho aqui sobretudo para saber de voçês e das meninas. bjs p todos!