quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Dedo? Qual dedo?

O pai-de-todos da esquerda estava tranquilamente debaixo do pao, quando todos os da direita se cerraram em torno do cabo da faca de pao e, numa inexplicável descordenaçao de hemisférios, a puxaram para baixo e para trás, com um movimento decidido.

Lembro-me bem, na altura em que mudámos para esta casa, de andarmos pelas lojas do ménage com a nossa lista de coisas imprescindíveis. Entre elas, uma faca de pao. Lembro-me que, por mais duas ou tres libras, podíamos ter trazido um conjunto de cinco facas chinesas que incluía a faca de pao e uma base em madeira. Mas, sem necessidade de tanta lamina e com pouco espaço na bancada, decidimos manter os planos e comprar uma única, boa, faca de pao. E lá boa é ela. Na verdade, até se revelou uma faca multi-usos, que nao só corta o pao, como corta a pele e a carne; e estou certo que também teria cortado a unha, se tivesse conseguido atravessar a falangeta (benditos canecos de leite que a minha mae me obrigou a engolir).

Naturalmente, soltei um grito inumano. As meninas apareceram aterrorizadas na cozinha, a chorar só de imaginar o que podia ter-se passado. Já a Ana, que estava ali de volta do fogao (mas, como sempre, com um olhinho de lado a controlar-me), manteve a calma e julgo que, entre dentes, a ouvi dizer: «Isso é que é burro!»

Enquanto eu me esvaía em sangue para dentro do lava-loiças, tentando ao mesmo tempo manter uma cara descontraída para sossegar as pequenas, a Ana rectificava temperos. Finalmente, perguntou-me se eu precisava de alguma coisa e eu pedi-lhe, por favor, um pano para tentar estancar a hemorragia.

Demorou um bocado lá para dentro, até concluir que nao tínhamos em casa nenhum trapo adequado; quando voltou à cozinha, trazia na mao uma camisa da GAP acabada de passar a ferro e, com cara de Martim Moniz, disse-me para usar aquilo. Para meu próprio bem, recusei, e convenci-a a trazer-me antes umas das minhas boxers velhas.

Quando me viu enrolá-las à volta do dedo, começou a abanar a cabeça e a dizer que eu nao sabia apertar uma ferida: parece que há várias maneiras de apertar feridas, e nem todas sao boas... Aliás, nao imaginam a quantidade de coisas, assim simples e quotidianas, que ao longo destes anos o meu amor já me explicou que eu nunca soube fazer antes de ela me ensinar.

Justiça lhe seja feita, nessa altura a Ana prestou-se a ajudar-me mesmo e vinha até apertar a minha ferida; mas aí comecei eu a esbracejar, para que me saíssem todas da frente: é que a minha tensao arterial já estava ao nível do linóleo e o meu queixo nao tardava a ir fazer-lhe companhia.

Cambaleando às suas ordens, fui estender-me no chao da sala, com as pernas em cima do sofá e com a mao em cima do peito, para nao pingar a alcatifa do senhorio. Enquanto no sótao a Ana vasculhava os sacos ainda por arrumar à procura de pensos, as meninas acomodaram-se à minha volta. A Sara, entediada com aquele espectáculo, ligou a televisao à procura de outro. A Matilde foi buscar papel e canetas, sentou-se à chines e começou a puxar-me o braço para que eu pintasse consigo.

Finalmente a Ana desceu e, durante os minutos seguintes, por entre chacota e recriminaçoes, lá me fez um curativo. Depois cedeu às recomendaçoes da nossa filha mais velha, que passou o tempo todo a pedir-lhe que nao se distraísse com o jantar ao lume, e voltou para a cozinha, sem ficar a assistir à minha recuperaçao.

Quando me senti capaz de sobreviver sozinho, levantei-me e arrastei-me em busca da minha fatia de pao: com a fraqueza com que estava, nao podia esperar pelo jantar. Barrei-a abundantemente com queijo da serra e meti-a na boca em duas dentadas. Estava ali apoiado no canto da bancada, sentindo-me restabelecer a cada pedaço que engolia, quando a Ana me perguntou: «Entao, agora mastigas de boca aberta?»

Tréguas? Que é lá isso? Eu às vezes acho que hei-de estar um dia com os pés para a cova e que nessa altura a Ana me há-de dizer para manter as costas direitas. Mas, o que é que havemos de fazer, é a nossa natureza: nao só lhe pedi desculpa como, uma hora depois, já estava a lavar a loiça toda do jantar, apenas com a mao direita.

Só nao consegui foi esconder um pequenino sentimento de vingança, quando reparei que tinha salpicado de sangue os cortinados da cozinha: é que, se a loiça é comigo, a roupa é com a Ana. O episódio ainda nao está encerrado e quem ri por último ri melhor: só tenho que ver se estou por perto quando estiver a passá-los a ferro.

Claro que a KT e o MD sao mais giros que nós, e fizeram isto tudo em grande, com o dobro da graça e da perversidade. Mas é preciso ver que eles tinham toda uma equipa de produçao a apoiá-los, e um orçamento hollywoodesco. À nossa escala, a Ana e eu damos o nosso melhor na guerrilha doméstica.

7 comentários:

pmarques disse...

o pai de todos?! ninguém corta o pai de todos!!![deves estar lindo]
queijo da serra?! isso por aí não está mau, entre queijo da serra e pinot grigio...
finalmente: tu e o teu amor estão a precisar de um fim de semana sem meninas (nem livros!) ou isso não chega ao natal!

rantanplan disse...

COITADINHO DO MEU MANINHO!ARNAGE, ACABOU A SOLIDARIEDADE FEMININA, TENS QUE TOMAR CONTA DELE. CONTINUO O RANTANPLAN, MAS ESTOU EM MODO IRMÃ-GALINHA, NÃO É BONITO DE SE VER (tipo anjo da guarda do rose is rose em modo anjo vingador... check it out...)

Capacete: tesouras boas e facas manhosas... pequenas dicas para a felicidade doméstica. Bjs, tem cuidado contigo, filho.
Eu sei que os teus amigos lá do serviço vêem isto, mas não tenhas vergonha, eu já me calo

arnage disse...

ahaha até chorei a rir com tal descriçao.

o capacete esqueceu-se de tres pormenores fantásticos.
Enquanto tinha o dedo debaixo da torneira, apertava a ferida no sentido oposto ao de a fechar, o que...
Enquanto isso perguntava se nao era melhor ir levar um ponto. Ora sendo hora de jantar, disse-lhe que nao.
Já a virar transparente esbracejou para que saíssemos da frente pois tinha que se deitar, mas "espertinho", tentou subir as escadas para ir para a cama. Claro que tive de lhe dizer que ficasse pela sala pois o jantar estava quase pronto e as meninas tinham que ir para a cama cedo.

Claro que ao fundo ouvia uma voz que dizia "ó filho mas estás bem? ve-lá se nao queres que te faça um cházinho?! queres que te traga o jornal?", mas...

...e já disse às meninas "cuidado com as maos por baixo das facas, lembram-se da cena que o vosso pai fez no outro dia?!"

rantanplan disse...

Então mas diz lá, Arnage, para sossego geral: qualquer coincidência da descrição com a realidade é mera coincidência? Qual é o grau de IPP (incapacidade parcial permanente) que achas que vai resultar deste episódio?
Pelo menos, serviu para a educação das meninas para acidentes domésticos, já não é mau....

JoanaM disse...

Pois eu, que nem conheço o capacete, estou mesmo a imaginar a cena e já me estive aqui a rir...Imagino perfeitamente a Ana, e até consigo imaginar a cara dela! As melhoras...
E bjs para todos!

arnage disse...

IPP com grau 0

Joana, entao e a solidariedade feminina?!!!

JoanaM disse...

desculpa, mas é que tal foi a descrição que visualizei mesmo a cena...