O pai-de-todos da esquerda estava tranquilamente debaixo do pao, quando todos os da direita se cerraram em torno do cabo da faca de pao e, numa inexplicável descordenaçao de hemisférios, a puxaram para baixo e para trás, com um movimento decidido.
Lembro-me bem, na altura em que mudámos para esta casa, de andarmos pelas lojas do ménage com a nossa lista de coisas imprescindíveis. Entre elas, uma faca de pao. Lembro-me que, por mais duas ou tres libras, podíamos ter trazido um conjunto de cinco facas chinesas que incluía a faca de pao e uma base em madeira. Mas, sem necessidade de tanta lamina e com pouco espaço na bancada, decidimos manter os planos e comprar uma única, boa, faca de pao. E lá boa é ela. Na verdade, até se revelou uma faca multi-usos, que nao só corta o pao, como corta a pele e a carne; e estou certo que também teria cortado a unha, se tivesse conseguido atravessar a falangeta (benditos canecos de leite que a minha mae me obrigou a engolir).
Naturalmente, soltei um grito inumano. As meninas apareceram aterrorizadas na cozinha, a chorar só de imaginar o que podia ter-se passado. Já a Ana, que estava ali de volta do fogao (mas, como sempre, com um olhinho de lado a controlar-me), manteve a calma e julgo que, entre dentes, a ouvi dizer: «Isso é que é burro!»
Enquanto eu me esvaía em sangue para dentro do lava-loiças, tentando ao mesmo tempo manter uma cara descontraída para sossegar as pequenas, a Ana rectificava temperos. Finalmente, perguntou-me se eu precisava de alguma coisa e eu pedi-lhe, por favor, um pano para tentar estancar a hemorragia.
Demorou um bocado lá para dentro, até concluir que nao tínhamos em casa nenhum trapo adequado; quando voltou à cozinha, trazia na mao uma camisa da GAP acabada de passar a ferro e, com cara de Martim Moniz, disse-me para usar aquilo. Para meu próprio bem, recusei, e convenci-a a trazer-me antes umas das minhas boxers velhas.
Quando me viu enrolá-las à volta do dedo, começou a abanar a cabeça e a dizer que eu nao sabia apertar uma ferida: parece que há várias maneiras de apertar feridas, e nem todas sao boas... Aliás, nao imaginam a quantidade de coisas, assim simples e quotidianas, que ao longo destes anos o meu amor já me explicou que eu nunca soube fazer antes de ela me ensinar.
Justiça lhe seja feita, nessa altura a Ana prestou-se a ajudar-me mesmo e vinha até apertar a minha ferida; mas aí comecei eu a esbracejar, para que me saíssem todas da frente: é que a minha tensao arterial já estava ao nível do linóleo e o meu queixo nao tardava a ir fazer-lhe companhia.
Cambaleando às suas ordens, fui estender-me no chao da sala, com as pernas em cima do sofá e com a mao em cima do peito, para nao pingar a alcatifa do senhorio. Enquanto no sótao a Ana vasculhava os sacos ainda por arrumar à procura de pensos, as meninas acomodaram-se à minha volta. A Sara, entediada com aquele espectáculo, ligou a televisao à procura de outro. A Matilde foi buscar papel e canetas, sentou-se à chines e começou a puxar-me o braço para que eu pintasse consigo.
Finalmente a Ana desceu e, durante os minutos seguintes, por entre chacota e recriminaçoes, lá me fez um curativo. Depois cedeu às recomendaçoes da nossa filha mais velha, que passou o tempo todo a pedir-lhe que nao se distraísse com o jantar ao lume, e voltou para a cozinha, sem ficar a assistir à minha recuperaçao.
Quando me senti capaz de sobreviver sozinho, levantei-me e arrastei-me em busca da minha fatia de pao: com a fraqueza com que estava, nao podia esperar pelo jantar. Barrei-a abundantemente com queijo da serra e meti-a na boca em duas dentadas. Estava ali apoiado no canto da bancada, sentindo-me restabelecer a cada pedaço que engolia, quando a Ana me perguntou: «Entao, agora mastigas de boca aberta?»
Tréguas? Que é lá isso? Eu às vezes acho que hei-de estar um dia com os pés para a cova e que nessa altura a Ana me há-de dizer para manter as costas direitas. Mas, o que é que havemos de fazer, é a nossa natureza: nao só lhe pedi desculpa como, uma hora depois, já estava a lavar a loiça toda do jantar, apenas com a mao direita.
Só nao consegui foi esconder um pequenino sentimento de vingança, quando reparei que tinha salpicado de sangue os cortinados da cozinha: é que, se a loiça é comigo, a roupa é com a Ana. O episódio ainda nao está encerrado e quem ri por último ri melhor: só tenho que ver se estou por perto quando estiver a passá-los a ferro.
Claro que a KT e o MD sao mais giros que nós, e fizeram isto tudo em grande, com o dobro da graça e da perversidade. Mas é preciso ver que eles tinham toda uma equipa de produçao a apoiá-los, e um orçamento hollywoodesco. À nossa escala, a Ana e eu damos o nosso melhor na guerrilha doméstica.
7 comentários:
o pai de todos?! ninguém corta o pai de todos!!![deves estar lindo]
queijo da serra?! isso por aí não está mau, entre queijo da serra e pinot grigio...
finalmente: tu e o teu amor estão a precisar de um fim de semana sem meninas (nem livros!) ou isso não chega ao natal!
COITADINHO DO MEU MANINHO!ARNAGE, ACABOU A SOLIDARIEDADE FEMININA, TENS QUE TOMAR CONTA DELE. CONTINUO O RANTANPLAN, MAS ESTOU EM MODO IRMÃ-GALINHA, NÃO É BONITO DE SE VER (tipo anjo da guarda do rose is rose em modo anjo vingador... check it out...)
Capacete: tesouras boas e facas manhosas... pequenas dicas para a felicidade doméstica. Bjs, tem cuidado contigo, filho.
Eu sei que os teus amigos lá do serviço vêem isto, mas não tenhas vergonha, eu já me calo
ahaha até chorei a rir com tal descriçao.
o capacete esqueceu-se de tres pormenores fantásticos.
Enquanto tinha o dedo debaixo da torneira, apertava a ferida no sentido oposto ao de a fechar, o que...
Enquanto isso perguntava se nao era melhor ir levar um ponto. Ora sendo hora de jantar, disse-lhe que nao.
Já a virar transparente esbracejou para que saíssemos da frente pois tinha que se deitar, mas "espertinho", tentou subir as escadas para ir para a cama. Claro que tive de lhe dizer que ficasse pela sala pois o jantar estava quase pronto e as meninas tinham que ir para a cama cedo.
Claro que ao fundo ouvia uma voz que dizia "ó filho mas estás bem? ve-lá se nao queres que te faça um cházinho?! queres que te traga o jornal?", mas...
...e já disse às meninas "cuidado com as maos por baixo das facas, lembram-se da cena que o vosso pai fez no outro dia?!"
Então mas diz lá, Arnage, para sossego geral: qualquer coincidência da descrição com a realidade é mera coincidência? Qual é o grau de IPP (incapacidade parcial permanente) que achas que vai resultar deste episódio?
Pelo menos, serviu para a educação das meninas para acidentes domésticos, já não é mau....
Pois eu, que nem conheço o capacete, estou mesmo a imaginar a cena e já me estive aqui a rir...Imagino perfeitamente a Ana, e até consigo imaginar a cara dela! As melhoras...
E bjs para todos!
IPP com grau 0
Joana, entao e a solidariedade feminina?!!!
desculpa, mas é que tal foi a descrição que visualizei mesmo a cena...
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