quinta-feira, 3 de junho de 2010

Slow

Eu, que no dia 25 de Dezembro de 1984 pela hora do almoço já tinha gasto as pilhas do meu novo walkman a tocar e a rebobinar isto constantemente, estaria a mentir se dissesse agora que nunca gostei de slows. Mas disfarçava bem: só fraquejava se sozinho, no quarto, ou se bem acompanhado, no recato das discotecas que naquele tempo faziam matinées.

Enfim, coisas que já lá vao. Em passando a adolescencia, a malta acelera sempre. A vida é para viver, e nao há livro do MK nem filme do JT que nos convençam a faze-lo devagar, em vez de depressa. Se bem me lembro (nao lembro nada, mas invento), foi até por esta altura que duas novidades vieram precipitar a minha vida num ritmo frenético.

O drive through do McDonald’s na 2ª circular permitia-me jantar fora em quinze minutos; o microondas, que a mae comprou quando finalmente se convenceu que nao era cancerígeno, permitia-me faze-lo em apenas tres! Nao é portanto de estranhar que, na vertigem dos acontecimentos fugazes, o fizesse quase sempre várias vezes ao dia, e que o meu relógio biológico se tenha transformado num metrónemo implacável.

Mas, nos ultimos tempos, as coisas entre mim e a fast food já nao eram o que tinham sido. E tudo piorou agora muito recentemente, quando comprámos a slow-cooker. Já ouviram falar? Na realidade, nao é propriamente uma coisa nova – apareceu nos EUA, na década de 70 - mas deste lado do Atlantico nao teve grande divulgaçao, até hoje.

Uma slow-cooker é uma panela especial, feita de um sucedaneo do barro com grande inércia térmica, que se monta em cima de uma resistencia eléctrica, e onde se cozinha lentamente, a muito baixas temperaturas. É como nas Furnas: os ingredientes sao todos colocados ao mesmo tempo, quase nao se junta água e nunca se destapa; cozinha horas a fio, mas é praticamente impossível ficar desfeito ou queimar, vai apenas sempre apurando, até à hora de ir para a mesa.

O resultado é fabuloso, posso confirmar. Os sabores libertam-se, distribuem-se e impregnam-se nos alimentos. Nao vou armar em chef, mas é o ideal para guisados, estufados, caldeiradas, cataplanas e afins. Tanto à carne como ao peixe, o segredo parece ser juntar bastante acompanhamento, daquele que “ensopa”: batata, cenoura, abóbora, massa, arroz, etc... O vinho branco é imprescindível, e vamos agora começar a explorar as ervas aromáticas.

Claro que estreámos a slow-cooker num domingo. Por volta do meio-dia, eu fui tratar do almoço e a Ana começou a fazer o jantar. Nessa tarde nao saímos de casa. Em boa verdade, nessa tarde quase nao saímos da cozinha: andámos sempre de roda da panela, a ler e reler as instruçoes, a verificar os botoes, a apalpar de lado para ter a certeza que aquecia, que se mantinha quente ou que nao aquecia demais, a abrir uma frincha da tampa: pequena para observar o interior, mas suficiente para ir sentindo o aroma.

O jantar do dia seguinte foi preparado ainda nessa noite, depois de eu ter submetido a panela ao derradeiro teste do esfregao e do escorredouro (nao suporto peças que guardam água nos rebordos interiores quando sao postas a escoar). Sendo 2ª feira um dia de trabalho, a slow-cooker trabalhou o dia todo: entre a minha saída de casa e a chegada da Ana, passaram cerca de 10 horas. Ao serao, o jantar estava delicioso: parecia feito pela minha avó - elogio supremo, mas nunca verbalizado, devido a uma certa irascibilidade da cozinheira.

Terá portanto sido na 2ª feira pela noitinha que, depois de deitar as meninas, eu me sentei refastelado no sofá da sala e, só à laia de curiosidade, me pus a somar kilowatts. Ora vao sete, noves fora nada, isto vezes 600 minutos... Ups!!

Por esse preço mais valia encomendar do Tavares todas as noites.

Para evitar tentaçoes, escondi a panela na garagem e andei a semana toda a pensar numa forma de reduzir o tempo de confecçao para umas razoáveis, e mais do que suficientes, 5 horas diárias. Depois da Ana se ter mostrado indisponível, e da directora da escola ter recusado dispensar a Sara uns minutos ao princípio da tarde, para virem num instantinho a casa ligar o aparelho, percebi que estava por minha conta.

Foi entao que, inteiramente na minha cabeça e sem ajuda de ninguém, eu cheguei à conclusao de que nao deveria ser muito difícil instalar ali uma espécie de relógio, que ligasse e desligasse a panela sozinho, a horas pré-determinadas. Reparem que eu nao estou a falar de domótica, nem de tecnologia de ponta, era só uma geringonça daquelas simples, que estao sempre a fazer tic-tac e fazem trim às vezes.

Sendo todavia incapaz de a conceber eu próprio, estava já disposto a explicar a situaçao ao meu sogro, a escutar as suas instruçoes e, depois de finalmente me assumir de todo incapaz, a pedir-lhe que me fizesse um e a pagar-lhe os portes para que mo enviasse. No cúmulo da excitaçao, cheguei mesmo a pensar oferecer-lhe uma percentagem do dinheiro que ia ganhar quando patenteasse e comercializasse o meu genial produto! Uma autentica revoluçao: o acessório imprescindível da slow-cooker, pelo qual todas as mulheres americanas ansiaram por mais de tres décadas!

Felizmente, restava-me um pouquinho de senso. E, antes de fazer figura de estúpido perante o mundo inteiro e o meu sogro, resolvi ir ali a uma loja de material eléctrico que fica no centro da vila. Do outro lado do balcao, uma senhora dos seus cinquenta anos ouviu pacientemente as minhas atabalhoadas dúvidas e explicaçoes, e depois respondeu. «Entao o que voce quer é um socket timer!?». Seja.

Foi buscá-lo ao expositor, e passou-mo para a mao: duas libras e trinta. Nao sao tao caros como eu estava à espera, mas de certeza que se vendem milhoes, e estao a fazer a fortuna de algum espertalhaço, algures na Índia ou na China. Já eu, acho que terei de esperar por outra oportunidade: desta vez estive perto, mas parece que fui um bocadinho too slow.

7 comentários:

pmarques disse...

estes poucos anos que nos separam fazem toda a diferença... bryan adams!??????!!!!!!!!!!
já nem me concentrei o resto do post.

capacete disse...

Bem achei que estava a expor-me demasiado! Sabes como é, quando as audiencias baixam, revela-se qualquer coisa assim escabrosa, a ver se pega...
Mas, antes de me condenares definitivamente, já agora confirma lá se por acaso o PCosta nunca fraquejou!? Olha que ele é praticamente do meu ano...
E entretanto bem que podias reler o post, que isto dá muito trabalho. A tua deixa estava lá mais para a frente: era a parte das Furnas!

pmarques disse...

achei (mesmo sem reler) um post muito engenhoso. muito literário, mesmo. quase mk. desculpa não ter evidenciado essa parte. fiquei a pensar na recusa da lentidão e no desejo de voltar a ela (mas sem canadianos ;)
furnas?! ah, o cozido... sabes como é, guisados e estufados não são bem a minha onda.

pmarques disse...

rantanplan?

capacete disse...

:) obrigado, obrigado!
para a nota musical até considerei algumas alternativas: umas mais aceitáveis, outras ainda menos; mas o canadiano é o mais fiel à realidade (felizmente passada).
passado um anito ou dois, já eu ouvia o Som da Frente. as ilusoes romanticas da adolescencia eram carpidas assim: http://www.youtube.com/watch?v=awctdTtAVWg

capacete disse...

O rantanplan anda noutra, mas espero que volte em breve.
até lá, acho que temos de ser nós dois a aguentar o barco.

pmarques disse...

vês?! bem melhor :)))