segunda-feira, 6 de setembro de 2010

Nao há duas sem tres

A escassas horas de botar neste mundo mais um filho (sem o qual, diz o povo misteriosamente, as outras duas nao havia), uma pessoa enche-se de esperança: que vai haver paz, pao, habitaçao, saúde, educaçao e talvez mais qualquer coisinha, para todos eles. Que o mundo vai ser um pouco melhor.
Anima-me, sobretudo, pensar que os meus filhos vao crescer num tempo em que já ninguém saberá quem sao o engenheiro José Sócrates e o professor Carlos Queiroz. Que nunca na vida se vao deparar com eles, a menos que um tremendo capricho do destino os leve à varandinha dos fumadores da Sala de Desenho dos Técnicos de 2ª Classe da Camara da Covilha, ou os faça passar perto da porta lateral do pavilhao gimnodesportivo da Escola Secundária de Nampula e ouvir os palavroes pelas oito da manha.
Preocupa-me, contudo, que o adagio popular se aplique nao só aos meus amores, mas igualmente aos meus desamores. É que já nao tenho as mesmas certezas quanto ao futuro do José Rodrigues dos Santos: a julgar pelo exemplo do seu mestre Fernando Pessa, é provável que ainda ande por cá daqui a muitos anos, a fazer sorriso maroto e a piscar o olho aos filhos dos meus filhos.
Se fosse só o sorriso maroto e o piscar do olho, no ecran à merce do telecomando, estávamos nós bem. O problema é que o José também escreve, e isso confere-lhe outro lastro. Nao que eu tenha lido os seus romances; o que eu li foi um livrinho chamado Conversas de Escritores, onde ele publicou as entrevistas televisivas que lhe foram concedidas por alguns autores famosos. Temos que lhe tirar o chapéu: nao é qualquer um que entrevista o Dan Brown, o Ian McEwan e o Gunter Grass e continua a achar-se a si próprio tao bom.
A capa nao deixa dúvidas. A cara do José aparece enorme, de olhos semi-cerrados, com os lábios e o rosto ligeiramente franzidos: o tipo de expressao que revela muita inteligencia, ou poucas fibras nos cereais. O seu nome aparece no cimo, em letras enormes, ofuscando os nomes de vários prémios Nobel da literatura. É evidente que o plural no título nao se refere apenas aos entrevistados, mas à condiçao comum dos vários protagonistas: o escritor José Rodrigues dos Santos conversando com o escritor José Saramago, o escritor José Rodrigues dos Santos conversando com a escritora Isabel Allende, o escritor José Rodrigues dos Santos conversando com o escritor Luís Sepúlveda...
Para dizer a verdade, as entrevistas até sao interessantes. Normalmente, sao interessantes parágrafo-sim-parágrafo-nao, mas mesmo assim gostei de as ler. Agora, o que é verdadeiramente insuportável é a pequena introduçao, a curiosa "história de bastidor" que antecede cada entrevista. Ao decidir revelar-nos esses episódios, é o próprio José Rodrigues dos Santos que se nos revela, na primeira pessoa. Assustador. Transcrevo uns trechos, sem comentários (embora me apetecesse muito), relativos ao encontro com Sveva Casati Modignani:

A casa da signora del bestseller é um pequeno bloco de uma rua estreita de uma zona relativamente humilde de Milao. Espanta-me a modéstia do local, considerando que a autora já vendeu mais de dez milhoes de livros e deve estar cheia de dinheiro.
(...)
O interior é um pouco escuro e as duas salas parecem-me pequenas, com uma decoraçao conservadora. Sveva Casati Modignani cumprimenta-me calorosamente e pergunta-me se quero um café.
Café nao, respondo; talvez um chá. Ma no voglio nero.
(...)
Sveva é uma mulher de cabelos brancos arranjados com cuidado. É claramente uma mulher que amadureceu bem; está vestida com muito gosto, como é hábito nas italianas, e parece fresca e cheia de energia, embora respire serenidade.
(...)
Mas nao sou apenas eu quem está ali a tirar as medidas ao outro. De pé diante do fogao, ela olha para mim com atençao e estuda-me as feiçoes.
«Voce é muito jovem!», exclama, com um tom de admiraçao na voz. «Dio mio, como é jovem!»
Pareço mais jovem do que sou, explico-lhe. Cortesia de um gene da minha mae.
Sveva espanta-se quando lhe revelo a minha idade.
«Estive a ler coisas sobre si e nao o imaginava assim», diz. «Sabe, voce teve uma vida muito aventurosa!»
Sim, tem sido animada.
(...)
A água ferve ao lume e Sveva despeja-a na minha chávena de porcelana branca, a superfície láctea ornada por belos desenhos, tao elegantes como a casa e a escritora italiana que me recebe. Mergulho o pacote de chá de camomila na água e retiro-o, mas a minha anfitria insiste que mantenha o pacote imerso.
«Precisa de estar lá dentro pelo menos cinco minutos para que o chá fique bem.»
Devolvo o pacote à chávena, mais por cortesia do que por convicçao. Uns meros cinco segundos depois, fiel às minhas proverbiais teimosia e impaciencia, retiro-o de novo. Mas ela nao nota ou, se nota, nada diz desta feita.
Para compensar, explico-lhe que vou correr um risco e tentar conduzir a entrevista em italiano.

Estao a ver o género? É tudo neste estilo. Alguém aí pode explicar-lhe as fronteiras entre o que se pensa, o que se diz e o que se escreve? Nós daqui ficamos muito agradecidos.
Mas antes de acabar (o livro e o post) há ainda um capítulo com agradecimentos. José Rodrigues dos Santos agradece a meio mundo e, no fim, à família mais próxima:

Obrigado ainda à minha filha Catarina, que me ajudou neste livro, e, sempre acima de tudo, a Florbela, que durante meses a fio viveu com um homem que pura e simplesmente nao parava de ler.

Quanto à filha, nao sei. Mas a mulher fez bem. Eu, se fosse casado com o José Rodrigues dos Santos, também preferia ir viver com um homem que nao parasse de ler. E nao era só por uns meses.


5 comentários:

pmarques disse...

qual cavalheirismo, qual quê! é a maledicência que mantém este blog vivo é o que te digo!!!
mas antes agora... deita tudo cá para fora antes que "botes mais um" ;)

capacete disse...

Se me permites, vou intercalando a maledicencia com algum cavalheirismo... Nao quero perder a oportunidade de te encontrar no Ceu!

pmarques disse...

ui! que ambição desmedida é essa?!

rantanplan disse...

Eu cá, acho que tendo em conta o destinatário, até foste brando... é dar-lhe! O prefácio é surreal, e o mais grave é que não pode haver certezas sobre se o rapaz não terá já seguido a regra pensar/dizer/escrever...

capacete disse...

Essa ideia é assustadora, mas és muito capaz de ter razao!