sexta-feira, 19 de novembro de 2010

A Sara

Nós aqui, sem as novelas da TVI, às vezes damos por nós a conversar ao jantar. Um destes dias, enquanto púnhamos a mesa, entre a cozinha e a sala, fui explicando à Sara que lhe ia propor um enigma. Isto com miúdas resulta sempre e, embora apenas conseguisse ouvir parte da conversa, a Ana também ficou logo em pulgas: «Um enigma?»
«É um enigma matemático!», disse eu. Esperava da minha filha uma reacçao semelhante à que eu tive, quando há muitos anos pedi um joguinho electrónico ao Pai Natal e ele, em vez de naves e tiros ou, pelo menos, labirintos e maças, me trouxe um em que tínhamos que fazer contas de cabeça para dar as respostas certas, e quantas mais acertávamos mais perguntas ele nos fazia, e também cada vez mais rápido, até que ou começávamos a falhar ou a deixá-las por responder e acabávamos por morrer esmagados num canto do ecran. Mas ela nao pareceu incomodada com o tema, e eu continuei: «O papá vai dizer uma sequencia de números, e tu...»
«Ah, e eu tenho que continuar, nao é? Boa, adoro isso! Lá na escola às vezes fazemos isso.». «Ok, filha! Mas esta é capaz de ser mais difícil, está bem?». Senti-me um pouco cruel, porque o enigma que estava prestes a propor-lhe era a sequencia de Fibonacci. Francamente, nao é coisa em que pense todos os dias; mas, nessa manha, eu próprio tinha ficado especado a olhar para ela num passatempo de jornal e acabado por recorrer às soluçoes. Antevia, portanto, um serao longo e animado.
Geri um bocadinho a expectativa, até que estivéssemos todos sentados à mesa, e depois enunciei: «1...1...2...3...5...8...». Começou um burburinho, sucederam-se as perguntas, instalou-se a confusao. «Repete lá, repete lá, que eu nao estava a ouvir.». «É só um, ou é um e depois um outra vez?». «Ah, já sei: sao os números primos!». «Nao sao nada! Entao desde quando é que o oito é um número primo?». «E se fossem os números primos por que é que eu dizia duas vezes o um?». «O pai disse oito? Nao ouvi o oito!». «Disseste oito, nao disseste?». «Disse: 3...5...8...». «Entao e os uns?». «Desculpa, estava a dizer só a parte final!». «Entao diz lá outra vez, do princípio!». Disse. Depois fez-se silencio.
Bebi um golinho de vinho e fiquei a saborear o momento. A Ana absorta de olhos no tecto. A Sara a remoer de olhos no prato. A Matilde intrigada a pensar quem seriam os primos dos números. Comecei a comer devagar. Pouco depois, a Sara estava outra vez a pedir-me para repetir. «Sabes,» disse eu, soerguendo-me já meio arrependido, «assim é capaz de ser muito difícil. É melhor o papá escrever num papel, porque visualizando...»
«Já percebi!», interrompeu-me a minha filha. «Somas os dois últimos para descobrir o seguinte, nao é?» A Ana pareceu acordar de repente: «O que é que ela disse?» E eu: «É... A Sara adivinhou!» Só para ter a certeza, ainda lhe perguntei afinal qual era o próximo número. «É treze: 3...5...8...13! É, nao é?». «É.»
Enquanto a Ana fazia contas e eu me recompunha do choque, a Sara quis saber: «Oh pai, podes perguntar outro? Tens mais enigmas?». «Posso... Espera lá um bocadinho enquanto eu penso noutro...». E ela, logo de seguida: «Oh pai...». «Espera um bocadinho, filha...». «Nao é isso, pai! Nao há mais esparquete, pai?»
A Sara? A Sara é uma força da Natureza.

6 comentários:

rantanplan disse...

Fogo... tou esmagada!! tens imediatamente que fazer aqui o compromisso solene de nunca por nunca revelar à Sara toda a verdade sobre o

Rantanplan

PS: é só a bem das referências familiares básicas, de resto tudo bem (chuiff).

Deixa-me só passar a azia, para pelo menos poder acompanhar no esparguete

pmarques disse...

é um prodígio! ainda para mais se pensarmos nos pais que lhe calharam. tiveste que ir às soluções???!!!

capacete disse...

É verdade, fui às soluçoes! Depois arrependi-me, mas quis convencer-me que tinha sido a impaciencia a motivar-me (estava em horário de trabalho) e nao a incompetencia...
Mas devo assumir que também tenho, de certeza, a minha costela de Rantanplan. Nestas ocasioes, lembro-me sempre do que me disse um dia a Filipa Mourao: «Sabes, eu acho que tu nao és assim tao inteligente!»

pmarques disse...

:)))) isso é que foi coragem! (a dela e a tua)

JoanaM disse...

:) que bom viver sem novelas da TVI. Adoro seguir-vos assim desta maneira distante. Bjs

arnage disse...

..pmarques, tu és óptima nisto das entrelinhas ;)